Filme do Dia: Vitalina Varela (2019), Pedro Costa
Vitalina Varela (Portugal, 2019). Direção:
Pedro Costa. Rot. Original: Pedro Costa & Vitalina Varela. Fotografia:
Leonardo Simões. Montagem: Vitor Carvalho & João Dias. Com: Vitalina
Varela, Ventura, Manuel Tavares de Almeida, Francisco Brito, Marina Alves
Domingues, Imídio Monteiro.
Vitalina (Varela) é uma cabo-verdiana
que retorna a Portugal após a morte de seu marido, sem chegar a tempo de
encontrar com seu cadáver, e que possui uma relação ambígua com o legado que
ele lhe deixou de lembranças, incluindo traições e uma vida ilícita que ela
desconhecia. Vitalina se aproxima de um padre (Ventura), que teve contato com o
marido nos últimos tempos.
Radicalizando ainda mais a proposta
estética e dramatúrgica dos tempos de obras densas como No Quarto da Vanda, Costa retorna em sua trilogia a trabalhar com
atores naturais cabo-verdianos (alguns deles já veteranos em sua filmografia,
como Ventura) com impressionantes efeitos. Ao contrário de sua produção
anterior, em que se amparava também em uma figura real, Vanda Duarte, a
Vitalina aqui elaborada parece ser tanto uma representação de si, como
passaporte para evocações de teor quase bíblico da existência humana. Abole-se
com as interpretações ainda razoavelmente naturalistas daquele e até mesmo as
pequenas ações humanas do cotidiano passam a ser emolduradas com uma carga
dramática incomum, como se tomar um banho. Emolduradas parece ser o termo mais
adequado, já que Costa tira extraordinário partido dos gradis das moradias
extremamente escuras em que trafegam qual zumbis, seus moradores, evocando, por
exemplo, um halo celestial para um momento transido de quase epifania do padre
sem rebanho vivido intensamente por Ventura. Permeado por evocações cristãs,
descrevendo as moradias como verdadeiras catacumbas e sem apelar – como sempre
– para qualquer trilha musical, diegética ou não, ou movimento de câmera – o
filme constrói um painel convincentemente digno e belo como expressão da dor e
sofrimento dos que retrata, transido por uma mitopoética que beira
expressionista, criada a partir dos artifícios de iluminação com que descreve
os ambientes e os transforma em verdadeiras obras pictóricas, como é o caso de
um túnel com tubulações, para ficar em um exemplo gritante do uso de uma
prática que se encontra disseminada em quase todos os seus planos. Exercício
tão árido e duro na sua ausência de concessões quanto os personagens do filme –
vividos com tal dignidade, que levou a atriz-título a ganhar o prêmio de
interpretação feminina em Locarno, sem ser atriz profissional – que necessita
de um espectador atento para se extasiar com sua beleza, evocativa mais que
nunca talvez da dramaturgia da dupla Straub-Huillet, a quem Costa já prestou
seu tributo, belo e anticonvencional (Onde Jaz o Teu Sorriso), mas sem esquecer as evocações do pioneiro neorrealista A Terra Treme (1948), de Visconti, que
também fazia uso bastante incomum de seus não atores e o ambiente em que
viviam, mesmo em comparação com outras obras do ciclo italiano, com uma
personagem, como naquele, chamada Ntoni. Beneficia-se certamente, de seus
padrões, ao mesmo tempo luxuriosamente estetizados e extremamente contidos para
conduzir momentos mais intensamente dramáticos com a simples presença de uma
voz gritada ou modulações, quando surgem cenas filmadas fora dos ásperos muros,
também eles de uma expressividade dramática tão carregada de sentimento mudo
quanto as que, de maneira bastante distinta, haviam sido elaboradas por
Tarkovski em filmes como Stalker.
Leopardo de Ouro em Locarno. OPTEC. 124 minutos.
Comentários
Postar um comentário