Filme do Dia: Cidadão Boilesen (2009), Chaim Litewski

 


Cidadão Boilesen (Brasil, 2009). Direção: Chaim Litewski. Fotografia: José Carlos Asbeg, Ricardo Lobo & Cleison Vidal. Música: Lucas Marcier & Rodrigo Marçal. Montagem: Pedro Asbeg.

Em um país conhecido pelo não enfrentamento da memória dos tempos de sua ditadura mais recente ou de um uso marcadamente maniqueísta na medida em que pouco aprofunda em termos reflexivos, esse documentário faz uso de uma quantidade bem razoável de material de arquivo (no qual imagens documentais e ficcionais são utilizadas com fins de efeito diverso) para se encaminhar no sentido oposto. Cede-se a fala aqui tanto a ex-militantes, inclusive o que coordenou a ação da morte do personagem-título, o empresário Henning Boilesen, que ao final apresenta talvez a fala mais forte de todo o filme, afirmando sobre seu convívio com as “mortes que vivi, as morte que eu morri, a morte que eu não e a morte que e as mortes que eu cometi” a partir de uma fala que o cita de ninguém menos que Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos militares mais notórios por seu envolvimento com a tortura nos órgãos repressores da época, como o DOI-CODI. Ainda que a referência ao célebre filme de Welles esteja presente em seu título, e até um detalhamento do perfil psicológico de Boilesen seja rapidamente sugerido, em um trecho não exatamente dos mais felizes, o filme se preocupa menos em compreender quem fora esse, em sentido existencial, algo bem mais fácil de ser assumido em se tratando de um personagem ficcional, que de utiliza-lo, em um movimento semelhante ao de seu próprio assassinato, espécie de tipo exemplar a instilar medo em outros potenciais alvos do grande empresariado local, para pensar o período de talvez maior polaridade da história política brasileira recente e que, após o AI-5, provocaria a radicalização de ambos os lados: no campo da esquerda o abraço da luta armada, já não existindo mais qualquer possibilidade de expressão por via democrática (como fala didaticamente um militante no documento Brazil: A Report on Torture, raro produto audiovisual do período a colher depoimentos de militantes de esquerda exilados no Chile); no da direita a profissionalização da tortura e assassinato de militantes da esquerda armada na Operação Bandeirantes, popularmente conhecida como OBAN, do qual Boilesen não apenas exercia notável protagonismo, em termos de mobilização junto a classe empresarial da qual fazia parte (era presidente do grupo Ultragás) como ainda fazia questão de testemunhar torturas cometidas e importara um equipamento ele próprio que ficou conhecido como “pianola Boilensen”. A cultura da impunidade em relação às sevícias perpetradas pelos militares, que não possui equivalentes, ao menos nessa extensão e latitude em governos similares da Argentina ou do Chile, gera exemplos estapafúrdios como o de Brilhante Ustra, único militar formalmente condenado décadas após, fazer reclamações da existência de tributos em logradouros a ex-militantes de esquerda quando a família de Boilesen não tivera nenhuma indenização por parte das autoridades do Estado, equiparando a violência perpetrada por este a dos grupos que o combatiam, em proporções numéricas, de suporte e de chancela ideológica à época, completamente dissimilares. Sem falar se tratar do próprio Estado. Quanto à possibilidade de leitura que relativizaria a participação do empresariado nas ações aqui relatadas, e cuja participação civil, aliás foi raramente tematizada pelo cinema brasileiro (duas louváveis exceções, além desse, sendo o média metragem nunca exibido, por motivos óbvios, comercialmente, Você Também Pode dar um Presunto Legal e o outro sendo Pra Frente, Brasil, lançado em momento de redemocratização e que tem generosos trechos exibidos, assim como depoimento de seu diretor, Roberto Farias) a possibilidade de se dizer não a OBAN foi confirmada por parte de dois grandes empresários paulistanos, Antonio Ermírio de Moraes e José Mindlin. Nessa associação entre sociedade civil e militar, ambos os lados se beneficiavam, com o empresariado ganhando benesses estatais, enquanto os militares recebiam suporte financeiro (menos importante que o de um apoio à causa segundo Fernando Henrique Cardoso) e gerando a migração de práticas utilizadas contra os criminosos comuns pelo Esquadrão da Morte para a repressão política). Também são utilizadas cenas dos filmes Lamarca (1994), de Sergio Rezende e Batismo de Sangue (2006), de Helvécio Ratton. Palmares Prod. Cinematográficas para Imovision. 92 minutos.

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