O Dicionário Biográfico de Cinema#98: Walt Disney
Há uma imensidão de livros sobre Disney e o mundo que ele fez e haverão mais. Ele é um dos grandes temas americanos: a mescla profana de artista e homem de negócios; a delgada alma que exerceu influência enorme; um gigante do cinema, mesmo que um de seus traidores; e o flautista encantado por meio século das crianças americanas, cuja extraordinária insistência na fantasia, veio para mudar a aparência da terra e a selva suburbana. Na carreira de Walt Disney, pode-se observar a passagem das histórias em quadrinhos ao da imagens geradas pelo computador. Faz Deus parecer um pouco lento e antiquado.
Um artigo como esse pode apenas arranhar a superfície. Poderemos dizer, primeiro, que Walter Elias foi educado no Kansas City Art Institute, que desistiu (somente com dezesseis anos) de ser um motorista voluntário de ambulância no Front Ocidental. Em seu retorno a Kansas City, uniu-se ao artista comercial Ub Iwerks (1901-71), e começaram a trabalhar em desenhos animados e curtas animados - a filmagem de desenhos em progressão. Formaram uma companhia, Laugh-O-Gram, mas faliram, e então, em 1923, alegadamente com 40 dólares, Walt, seu irmão Roy, e Iwerks foram para Hollywood.
A animação era bastante competitiva nos anos 20, e não foi senão ao final da década que Disney ganharia supremacia. Mickey Mouse foi criado em 1928, e com seu terceiro filme, Steamboat Willie [O Vapor Willie], ganhou som. Iwerks fazia os desenhos, Roy Disney era o empresário, e Walt era o chefe - ninguém disputava sua autoridade, ou seu papel de homem de ideias. Os desenhos da Silly Symphonies se iniciaram em 1929, e Disney começou a construir uma equipe de jovens animadores. Nos primórdios dos anos 30, trabalhava com o Technicolor em duas tiras e construindo seu zoo com Minnie, o Pato Donald, Pateta e Pluto. Em 1935, estava utilizando a cor em três tiras e novas câmeras multiplanos.
Foi o impulso de Disney nunca se satisfazer com o que tinha. Foi um homem incansavelmente ambicioso, dirigido mais pela tecnologia que ideias ou ideologias. Seu objetivo seguinte foi um longa de animação - Snow White and the Seven Dwarfs [Branca de Neve e os Sete Anões], que rendeu cerca de 8 milhões de dólares em seu primeiro lançamento. (Dois anos depois, The Wizard of Oz [O Mágico de Oz] chegou próximo dos dois milhões).
No entanto, a organização Disney ainda estava pendurada nos bigodes de Mickey. Os custos de desenvolvimento permaneceram em débito até a série de animações em longa-metragem realizados durante a guerra - nota: Disney estava sempre tranquilizador em sua mensagem. Branca de Neve foi uma sensação popular e uma caricatura da história original. Desde o início, Disney digeria grandes histórias e material complexo para produzir belas refeições. Nem mesmo suas fantásticas habilidades em animação disfarçavam isso. Os traços da Disney nunca foram tão intrincados ou adoráveis quanto nos anos 40, mas a beleza não possuía âmago ou coração. Foi o início da beleza tecnológica: Pinocchio [Pinóquio] (40); o bastante ambicioso Fantasia (40); The Reluctant Dragon [O Dragão Relutante] (41); Dumbo (41); Bambi (42), que - na morte da mãe de Bambi - foi talvez o filme mais audaz que jamais faria, assim como os grosseiros exemplos de lixo antropomórfico; The Three Caballeros [Você Já Foi à Bahia?] (44); Make Mine Music! [Música, Maestro!] (46); e Song of the South [A Canção do Sul] (46), que misturava animação e ação ao vivo.
O próximo passo foi uma série de longas de ação ao vivo e documentários de história natural: Treasure Island [A Ilha do Tesouro] (50, Robert Stevenson*), foi uma versão bastante boa do velho clássico, enquanto The Living Desert [O Deserto Vivo] (53, James Algar) foi uma aliança grotesca de capturas documentais com os "humores" estabelecidos por filmes como Bambi.
Em 1954, Walt Disney [Disneylândia] começou na televisão (na ABC) - sendo exibido, de uma forma ou de outra, até 1990. Além do que, esta foi a primeira tentativa de um grande estúdio de produzir televisão. A ABC pagou 500 mil dólaeres pelo contrato, e mais 50 mil dólares por episódio. Todos saíram ganhando. A ABC teve seu primeiro grande programa de sucesso, enquanto Disney utilizou o dinheiro para financiar o parque Disneylândia em Anaheim (abriu em 1955). O programa de tv era uma antologia, mas introduzia certos personagens de ação ao vivo como Davy Crockett, muitos westerns, e novos personagens animados.
Os filmes continuaram: Cinderella [Cinderela] (49); Alice in Wonderland [Alice no País das Maravilhas] (51); The Story of Robin Hood [Robin Hood, o Justiceiro] (52, Ken Annakin), com Richard Todd como Robin; Peter Pan (53); 20,000 Leagues Under the Sea [20.000 Léguas Submarinas] (54, Richard Fleischer); The Vanishing Prairie [A Planície Imensa] (54, James Algar); Lady and the Tramp [A Dama e o Vagabundo] (55); Sleeping Beauty [A Bela Adormecida] (58); Kidnapped [A Espada de um Bravo] (60, Stevenson); Polyanna (60, David Swift); 101 Dalmatians [101 Dálmatas] (61); Mary Poppins (65) - no qual Julie Andrews se tornou a primeira intérprete em um filme da Disney a ganhar um Oscar; e The Jungle Book [Mogli, o Menino Lobo] (67), que talvez possua 1% do poder das histórias de Kipling.
Walt supervisionou Mogli, mas morreu em dezembro de 1966. Não há dúvidas de que o caminho seguido então por tudo foi um senso de marketing. A qualidade da animação estava em declínio. Os filmes de ação ao vivo são - ou aparentam ser para mim - menos valiosos como entretenimento para crianças que, digamos, The Secret Garden [O Jardim Encantado]; Winchester'73; The River [O Rio Sagrado], de Renoir; Scaramouche; Shane [Os Brutos Também Amam]; Singin' in the Rain [Cantando na Chuva]; ou The Glenn Miller Story [Música e Lágrimas] (para ficarmos apenas nos idos dos anos 50). Em outras palavras, Disney soube vender a ideia que havia algo de especial em filmes para crianças, resguardado pela propaganda anunciada em seus programas de TV. Do berço à universidade, Disney possuía as crianças. Houve protestos, mas estamos a colher as recompensas de tantas maneiras, como "adultos". Os filmes tornaram-se mais infantis.
A maior parte do final dos anos 60 e anos 70, a Disney foi uma força passiva, exceto pela acumulação estável de lucros da TV, da Disneylândia e da Disney World, que abriu em Orlando, Flórida, em 1971. Nada digno de nota aconteceu até 1984, quando foi adquirida por dois jovens executivos da Paramount, Michael Eisner e Jeffrey Katzenberg. Foram herdeiros dignos de Walt, e demônios de energia e eficiência. Lançaram a Touchstone e a Hollywood Pictures para desenvolver projetos de ação ao vivo, muitos deles mais duros que Disney costumava ser. Construíram parques e até mesmo retornaram a tradição dos longas animados: Return to Oz [O Mundo Fantástico de Oz] (85, Walter Murch); Down and Out in Beverly Hills [Um Vagabundo na Alta Roda] (86, Paul Mazursky); Ruthless People [Por Favor, Matem Minha Mulher] (86, Jim Abraham, David Zucker & Jerry Zucker); The Color of Money [A Cor do Dinheiro] (86, Martin Scorsese); Stakeout [Tocaia] (87, John Badham); Outrageous Fortune [Que Sorte Danada!] (87, Arthur Hiller); Adventures in Babysitting [Uma Noite de Aventuras] (87, Chris Columbus); Three Men in a Baby [Três Solteirões e um Bebê] (87, Leonard Nimoy); Good Morning, Vietnan [Bom Dia, Vietnã] (87, Barry Levinson); Who Framed Roger Rabbit [Uma Cilada para Roger Rabbit] (88, Robert Zemeckis) - talvez o melhor filme que a Disney jamais realizou; Cocktail; Honey, I Shrunk the Kids [Querida, Encolhi as Crianças] (89, Joe Johnston); Dead Poets Society [A Sociedade dos Poetas Mortos] (89, Peter Weir); Three Fugitives [Os Três Fugitivos] (89, Francis Veber); The Little Mermaid [A Pequena Sereia] (89, John Musker e Ron Clements); Pretty Woman [Uma Linda Mulher] (90, Gerry Marshall); Dick Tracy (90, Warren Beatty); Stella [Stella, uma Prova de Amor] (90, John Erman); Beauty and the Beast [A Bela e a Fera] (91, Gary Trousdale e Kirk Wise); Father of the Bride [O Pai da Noiva] (91, Charles Shyer); The Hand that Rocks the Cradle [A Mão que Balança o Berço] (92, Curtis Hanson); 3 Ninjas (92, Jon Turtletaub); Aladdin (92, Musker e Clements); Sister Act [Mudança de Hábito] (92, Emile Ardolino); The Mighty Ducks [Nós Somos os Campeões] (92, Stephen Herek).
Houve fracassos a reportar: a Eurodisney, a tentativa de estabelecer uma Disney World na França, que provocou déficits enormes inicialmente; e então, rumo ao milênio, uma vacilação no negócio como um todo que nem mesmo Eisner (agora sozinho no controle) poderia prevenir ou dissimular.
Disney é o caso teste. Podemos lamentar os limites que o império impôs nas leituras das crianças e em toda a nossa imaginação. No entanto, "Disney" tem deliciado e consolado milhões de crianças. Não há um exemplo franco de debate entre a comunicação de massa e a profundidade de uma obra mais elitizada. Para muitas pessoas, os filmes mantiveram a premissa de serem tanto uma grande arte quanto um prazer para o público. Mas não seria o suficiente o bastante dizer, "confie na multidão". Para a Disney distorceria a confiança para monopolizar a escolha.
Certa vez argumentei com o reitor de uma Ivy League (**) se teria sido os armamentos nucleares ou a televisão que mais seriamente afetou o mundo desde 1945. Os artefatos, disse o reitor, por conta da espada de Dâmocles no ar. A televisão, eu disse, em um ataque que foi levado em segurança, dia após dia.
Então, aqui está a questão: o cinema permanece um meio de massa - ou deveria sê-lo? Enfrentamos o tempo quando os filmes se assemelhavam ao teatro ou ao romance? Temos de desistir da esperança de filmes que atinjam a todos? Podem grandes realizadores ainda redimirem a esperança? Ou foi, simplesmente, uma curiosidade a-histórica que por umas poucas décadas (ou uns poucos filmes) a esperança estaria viva?
Texto: Thomson, David. The New Biographical Dictionary of Cinema. Nova York: Alfred A. Knopf, 2014, pp. 734-38.
(*) N. do E: aqui aparentemente Thomson confundiu o nome do autor do clássico livro de aventuras com o do diretor do filme, que segundo o IMDB foi Byron Haskin; curiosamente havia um realizador homônimo que trabalhou para Disney.
(**) N. do T: como ficaram conhecidas as universidades de maior prestígio estadunienses.
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