Filme do Dia: As Amorosas (1968), Walter Hugo Khouri

 


As Amorosas (Brasil, 1968). Direção e Rot. Original: Walter Hugo Khouri. Fotografia: Pio Zamuner. Música: Rogério Duprat. Música: Maria Guadalupe. Dir. de arte: Romeu Landrini. Com: Paulo José, Jacqueline Myrna, Lilian Lemmertz, Anecy Rocha, Stênio Garcia, Newton Prado, Inês Knaut, Ana Maria Scavazza.

Marcelo (José), já não tão jovem, não consegue se vincular a nenhum emprego ou relacionamento amoroso. Seu esteio emocional  é a irmã, Lena (Lemmertz), que também lhe arruma dinheiro para que se mantenha minimamente morando em uma mansão provisoriamente abandonada, de improviso. Ele se envolve rapidamente com a companheira de apartamento da irmã, Marta (Myrna), a quem pretende inicialmente apontar que merece mais que o ambiente vulgar de ser vedete de TV ao qual se encaminha, mas depois perde as esperanças. Aproxima-se então de uma colega da faculdade, Ana (Rocha), que apaixona-se por ele, mas a quem ele afirma que não há futuro para a relação deles, deixando-a magoada e aflita. Volta a tentar se aproximar de Marta, porém eles são levados para um local ermo por um grupo de playboys que seviciam Marta e o espancam.

Talvez o melhor filme de Khouri, onde nem mesmo um certo tom naïf na caracterização do habitual drama existencial do personagem, que se tornaria o alter-ego do cineasta por vários filmes, consegue extirpar, antes pelo contrário, a singeleza com que caracteriza sua fragilidade, recorrentemente se dobrando em caracol em posição fetal (algo que também é evidenciado em outros protagonistas da época como em O Bandido da Luz Vermelha) ou ainda seu notório distanciamento crítico do discurso engajado, aqui representado pelo grupo de estudantes do qual Ana, vivida de forma mais deslumbrante que nunca por Rocha, faz parte, sendo  que evidentemente se trata de um petardo contra os críticos e cineastas vinculados ao Cinema Novo. Num dos mais belos planos do filme, Marcelo é observado à distância, taciturno e cabisbaixo, em meio ao tráfego, pelos olhos da irmã, em seu trabalho, num plano que visualmente se tornou algo recorrente à época por cineastas (como Júlio Bressane em Matou a Família e Foi ao Cinema) que pretendem enfatizar uma subjetividade/individualidade sufocada em meio a impessoalidade do mundo em uma grande cidade. Há uma sensação de compressão e esmagamento do indivíduo em meio ao fluxo incessante de carros.  A TV, como nos filmes do Cinema Novo e também – sob outra extração – do Cinema Marginal, é associada ao universo da alienação, do efêmero e do vulgar. É nela que Marta se expõe como objeto do desejo reencenando a célebre cena do vestido esvoaçante de Marilyn Monroe em O Pecado Mora ao Lado. Boa parte das locações se dá na Universidade de São Paulo, inclusive a cena em que se observa uma humilhada Ana correr desesperada, sentindo-se rejeitada, e tropeçar caindo, numa representação feminina bastante convencional, da mesma forma que sua contraposição na figura da vedete vaidosa e bastante longe da complexidade das figuras femininas de um Antonioni vividas por Monica Vitti (em O Eclipse, por exemplo), que são o equivalente existencial do protagonista vivido por José, com maior densidade, inclusive, que seus contrapartes masculinos. A “bossa” modernista se encontra aqui presente, mas não de forma tão enfatuada quanto habitual, como, por exemplo, no momento em que Ana se delicia com a decoração e os rabiscos que compõem o ambiente do quarto de Marcelo. E, talvez no momento mais intenso do filme, ainda que a um passo da “profundidade” de um Woody Allen, Marcelo numa possível explicitação de sua angústia, afirma o quão tudo era efêmero e logo o beijo que dera em Ana já se tonara passado, afirmando que daqui a cem anos ninguém mais se lembraria deles (há uma referência similar, sob chave jocosa, inclusive, em Hannah e Suas Irmãs, de Allen) ou mesmo que daqui alguns milhares de anos tampouco se saberia sobre São Paulo. Outro que poderia disputar com esse e mais ricamente sutil, é o da troca de carinhos entre os irmãos, trabalhando a intimidade com uma forma de visualidade pouco comum em sua maneira quase corpórea e táctil no cinema brasileiro de então. Por outro lado, excessos dramáticos não tão bem conseguidos também perpassam o filme do início ao final, seja na representação da gangue de playboys, seja na algo ridícula tentativa de alerta de Marcelo para o potencial de uma Marta deslumbrada pela fama, mesma fama que a levará a ser humilhada pelo grupo de jovens na “emboscada” – assim como o próprio Marcelo alertara para o risco de sofrer violência inexplicável por alguém mais forte para Ana, antecipando o que lhe acontecerá. Ou ainda os excessos de seu desnecessário final, que bem poderia ter se concluído na sua referência cíclica ao mesmo belo plano de abertura, que segue uma árvore de cima a baixo até se deparar com a figura de Marcelo, mas que ao final leva adiante a cena com desnecessárias metáforas visuais de cunho psicanalítico que associam a copa da árvore ao (anti)herói novamente em posição fetal.  Com trilha musical vanguardista de Duprat e uma pequena participação especial dos Mutantes. Embora a iconoclastia existencial de Marcelo soe conservadora, sobretudo à época do filme, é curioso o quanto ela traz de potencialmente radical em termos de sua não conformidade ao mundo e o quanto o filme tenta trabalhar isso visualmente, como é o caso relativamente original, mas sempre a um passo do clichê,  do belo plano que  brinca com textura da faixa de pedestres e a sinalizações do trânsito em uma sociedade a qual, aparentemente,  cada vez somos menos livres para viver nossas verdadeiras individualidades. Noutro momento, tampouco exatamente sutil, Ana vasculha os livros de Marcelo e se encontram referencias  certamente também caras a Khouri como livros de e sobre D.H. Lawrence, Henry Miller ou A Cidade Sitiada de Clarice Lispector ou discos de Mozart e John Coltrane. Columbia Pictures do Brasil/Kamera Filmes. 104 minutos.

 

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