Filme do Dia: Comboio de Sal e Açúcar (2016), Licínio Azevedo
Comboio de Sal e Açúcar
(Moçambique/Portugal/França/Brasil/África do Sul, 2016). Direção: Licínio
Azevedo. Rot. Adaptado: Licínio Azevedo, Teresa Pereira & Filipe Santos, a
partir de obra de Azevedo. Fotografia: Frédéric Serve. Música: João Carlos Schwalbach. Montagem:
Wllem Dias. Dir. de arte: Andree du Prez. Figurinos: Isabel Peres. Com: Melanie
de Vales Rafael, Matamba Joaquim, Thiago Justino, Celeste Baloi, Antonio
Nipito, Sabina Fonseca, Absalão Narduela, Vitor Raposo, Absalão Maciel.
Moçambique, 1988. Em meio a guerra
civil um comboio carregado de sal e açúcar parte com militares e civis para uma
perigosa jornada. O objetivo dos militares é matar o líder guerrilheiro Xipeco,
maior responsável pelas ações de sabotagem cometidos no trajeto. O dos civis é
sobretudo o de negociar o açúcar, produto valorizado porque em falta em boa
parte do país. Dentre os civis se encontra a idealista enfermeira Rosa
(Rafael). Dentre os militares, Taiar (Joaquim) possui um padrão de correção que
o transforma em antípoda do inescrupuloso Saolmão (Justino), que faz uso de sua
situação para roubar e violentar mulheres casadas.
Embora lidando com um padrão de
produção inédito em termos de requinte e uma narrativa de traços
correspondentemente mais convencionais que sua filmografia anterior, pode-se
afirmar uma linha de continuidade com o princípio básico de seu realizador de
apresentar retratos da realidade moçambicana sem descambar para o espetaculoso.
Os traços de continuidade podem ser percebidos ao se observar no final um dos
homens se referir ao obsessivo bordão da época da Revolução, “a luta continua”,
que é o cartaz que surge com as primeiras imagens de seu longa anterior, Virgem Margarida. Se naquele o slogan
surge como um elemento a mais a retratar o contexto histórico ainda colado a
recém-independência do país, aqui se apresenta de forma mais diretamente
irônica, senão ambígua, pois no plano da imagem observamos Rosa descer com uma
criança de mãe morta, que aparentemente irá adotar como sua e tendo perdido na
viagem o homem que amava. Pode-se, dentro da chave a qual Azevedo trabalha, com
facetas da sociedade e da história moçambicana, imaginar que a luta continua
para Rosa, assim como para o restante do povo, apesar do colonialismo
anteriormente vivido, apesar dos inimigos contra os quais se deparam e,
igualmente e de forma mais pungentemente elaborada pelo filme, assim como seu
anterior, pelo próprio exército do país, cujas práticas autoritárias e sexistas
não precisaram esperar os treze anos que
separam a revolução do momento aqui retratado para se fazerem sentir em
segmentos específicos da população, como as prostituas do filme anterior,
imediatamente vítimas de um processo de “reeducação”. Se na produção anterior
havia uma dimensão coral que seguia várias personagens ao mesmo tempo e o
coletivo ganhava destaque sobre o individual, mesmo que sem apagar as alegrias
e vicissitudes desses observadas sobre a lente mais peculiar de um personagem,
aqui mesmo que tampouco se deixe de observar vários tipos, há não apenas uma
dupla principal, como ainda se esboça uma história de amor que parece ser a
moeda de negociação com a qualidade da produção e seus respectivos custos. E se
dos guerrilheiros anti-comunistas não se tem acesso ou possibilidade de
construí-los maniqueisticamente, tal e qual o cinema pós-independência o fez,
repetindo chavões ideológicos dos donos do poder então, esse maniqueísmo não
deixa de ser deslocado, aqui, para a elaboração dos personagens antitéticos de
Salomão e Taiar. Tal contraposição soa excessiva diante da polifonia de
discursos observada nas bocas de homens e mulheres. Não seria de todo perverso
se comparar a retidão moral do casal protagonista com a figura do Novo Homem ou
da Nova Mulher incensados pela cartilha ideológica rasteira de antes. Muda-se
aqui, no entanto, os valores a serem positivados: a utopia da construção de uma
vida sem os percalços da guerra, um tratamento mais digno em relação às
mulheres (tema recorrente na filmografia do realizador). E se em Virgem Margarida, a certo momento se
escutava um sucesso de Nelson Ned, aqui um popular hino religioso, também no
Brasil, é ouvido em uma procissão. Ukbar Filmes. 93 minutos.
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