O Dicionário Biográfico de Cinema#17: Graham Greene

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Graham Greene (1904-1991)
n. Berkhamstead, Inglaterra






Na sua ficção escrita, Graham Greene demonstrou uma cautela sombria pelo que chamava de "cinemas", cavernas de mau gosto, onde fotografias eram apresentadas. Ele não confiava em seu conforto ou diversão, mais do que ele confiava de suas vizinhas em ruas cinzentas, as igrejas. Ambos os edifícios cheiravam a culpa e mumificação para ele.


Mas na vida, Greene ignorou suas próprias advertências; amava ficar disponível para o escuro e suas ameaças. Seu pai, professor de escola, certa vez levou um grupo de garotos a um filme de Tarzan (na época de Elmo Lincoln), acreditando que o filme possuía valores antropológicos e educativos. Quando a fantasia crua surgiu, o desapontado pai saiu do cinema. Mas Graham e os garotos permaneceram até o final.

Enquanto jornalista em Nottingham, nos anos 20, fugia da luz da tarde para ver o que os cinemas locais oferecessem. Preferia ir sozinho, porque estar sozinho (e escondido) entre estranhos observando a sensação luminosa era demasiado estimulante: "Os cinemas possuem um efeito peculiar...é a emoção concentrada de tanta gente? Porque não funciona se você não estiver sozinho, para então observar quando alguém no meio da multidão pode zombar do ridículo do filme. É tudo muito curioso."

Há algo de crítico de Greene nisso: a admissão meio hipnotizada, meio distante de uma arrepiante solidão, na qual as coisas passam solenemente, quando seriam estúpidas se vivenciadas em companhia. O estado de espírito é furtivo, mas intelectual, um pouco lascivo, mas de uma distância onírica - é como observar alguém observando, uma mescla de voyeurismo extasiado e aversão sorridente.

"Quando descrevo uma cena", falou a Marie-Françoise Allain, "capturo-a com o olho móvel da câmera de cinema, mais que o olhar do fotógrafo, que a congela. Nesse domínio preciso penso que o cinema me influenciou. Autores como Walter Scott e os vitorianos foram influenciados pelas pinturas, e construíram seus ambientes como se fossem estáticos e viessem das mãos de um chefe da polícia. Trabalho com a câmera, seguindo meus personagens e seus movimentos. Então a paisagem se move. Quando viro minha cabeça e observo uma árvore, minha cabeça se move, a casa se move, os botes se movem, não se movem?"

Você poderia chamar isso de cinemático ou voyeurístico; o comichão humano existia antes da maquinaria, mas ganhou força ou insolência quando o filme industrializou a olhada tímida:

          O Sr. Tench saiu para procurar pelo seu cilindro de éter, no ardente sol mexicano e pó  esbranquiçado. Alguns abutres olharam para baixo do telhado com puída indiferença: ele ainda não era carniça.

                                                    a abertura de The Power and the Glory [O Poder e a Glória], 1940

Três nítidos planos - mas em um filme, como os abutres poderiam ser os observadores, e como o veredito deles então se tornaria o ponto de vista de Tench? A narrativa é muito mais escorregadia que o celuloide.

                           "Se alguém perguntar a você qual foi a sua mais profunda experiência sexual, o que você diria?
                          Sei a resposta para isso, permanecer na cama cedo da manhã e observar uma mulher em um roupão vermelho pentear o seu cabelo."

                                     Pyle e Fowler em The Quiet American [O Americano Tranquilo], 1955

Porém, se você filma isso, você corta para a mulher referida, tornando ela uma epifania, e aí você tem que encontrar a atriz certa e um roupão apropriado? Ou você apenas persiste no rosto caído de Fowler citando a frase? Algumas vezes o livro esconde a visibilidade ao mesmo tempo que a evoca, para que observemos Fowler e uma mulher - que pode ser qualquer mulher - enquanto lemos, e ainda nos maravilharmos se sua preciosidade for fabricada (para impressionar Pyle? para impressionar Fowler?)

                   Ele olha para fora da janela do bamboleante e acelerado carro, as figuras diminuindo para trás com o que parecia genuína comiseração. Muito lentamente, de um lado, a cidade afunda: muito lentamente no outro as grandes vigas transversais da roda de subir à vista. Quando o horizonte desliza longe, o Danúbio torna-se visível e os píeres de Reichsbrucke se elevam acima das casas.
                                                              do roteiro de The Third Man [O Terceiro Homem] (48)

Isso descreve a sequencia da roda gigante, imediatamente antes que Harry Lime fala de pontos e vidas abaixo de 20 mil libras um ponto, "livre de imposto de renda, velho." Porém a cena na tela não pode capturar o impulso arejado da cabine - a verdadeira náusea da presença de Lime - porque Carol Reed teve que filmar a cabine no estúdio em frente do processo de trabalho.

                         Eu observei-o caminhando com as pernas cobertas de vegetação atrás de um garota. Ele a alcança e andam lado a lado. Não penso que ele disse uma palavra a ela: era como o fim de uma história, exceto que antes de saírem da minha vista a mão dela estava sobre o ombro dele.
                                                                                        Fecho da história
                                                                                   "O Terceiro Homem"

A história foi escrita muito antes do roteiro, mas não publicada antes de 1950, e o final é um perdão não permitido pelo filme, onde Anna/Valli apenas se afasta, ignorando Holly Martins e a câmera. Foi um final sobre o qual Carol Reed e Greene discutiram. Reed sentiu que o público encontraria uma Anna  cínica e oportunista. Greene "tinha a perspectiva que um entretenimento desse tipo era um assunto muito leve para o peso de um final infeliz."

Então Greene permanece enquanto  um roteirista "natural" ou talentoso, o que não o confinou a ser apenas um "romancista cinemático". Portanto, o filme lhe permitiu um nível de intimidade, ou segredo, que é bastante moderno. O que ajudou foi uma destreza de escrita que produtores e magnatas agarraram, seu instinto para o suspense, seu próprio charme mundano e seu interesse no perigo - esse foi um leitor ávido que encontrou amizade em Alexander Korda (e alguns outros ditadores).

É possível apreciar Greene enquanto respeitável inglês. Daí o porque de François Truffaut utilizou-o, creditado como Henry Graham, em Day for Night [A Noite Americana], como um corretor de seguros londrino para informar sobre um projeto problemático. O pai de Greene ascenderia a diretor de uma  escola pública menor. O próprio Greene iria para o Balliol College de Oxford, e trabalhou para o Times, para a inteligência britânica em Serra Leoa (local de The Heart of the Matter) e em uma editora. Ele também manteve um constante fluxo de escrita - romances, não ficção, ensaios, roteiros e três peças teatrais encenadas. Ele foi um Companheiro de Honra e  segurou a Ordem do Mérito.

Tudo o que se encaixa com o Greene das fotografias - alto, empertigado, olhos tão pálidos que pareciam vazios, um pouco retraído e irônico, não sorridente mas não raivoso, e notavelmente livre dos excessos ou paixões. Era uma face limpa, envolvente; e que mudou pouco em sessenta anos. "Não tenho talento" disse certa vez, como um gerente de banco (profissão do jovem de Travels with my Aunt [Viagens com Minha Tia], "é somente uma questão de trabalho, de estar disposto a colocar no tempo adequado." Há uma qualidade de silêncio na face, algo evidente, digamos, no Baines de Ralph Richardson em The Fallen Idol [O Ídolo Caído]. É a quietude da esperança desesperançada ou o jogo desesperado.

Ele tentou diversas formas de suicídio e o giro da roleta russa na juventude. Viajou para lugares perigosos - México nos anos 30, Indochina nos 50, Haiti vez por outra, pontos acessíveis às blitz aéreas na África e em Londres. Um amigo dos patrões, havia sido comunista e podia ser demitido por causas tão tardias quanto J'Accuse, em 1982, quando foi mais caprichoso que Zola, incendiário sobre a corrupção na Côte d'Azur. Tentou ópio e prostitutas de forma prosaica. Foi processado por advogados em defesa de Shirley Temple por chamá-la de "boneca totsy". Havia uma imprudência nele; era como um homem tímido sendo flagrado por uma necessidade de ser chocante, ou de se expor.

Escreveu resenhas de filmes para o The Spectator em 1935. Em retrospecto, alegou que foi uma ideia bêbada formada após "o terceiro perigoso Martini."Mas teve problemas reais de dinheiros nos anos 30, e necessidade de encontrar uma maneira de se distanciar da melancolia. Não foi antes de 1972, quando suas resenhas foram publicadas como The Pleasure Dome, que Greene admitiu o elemento de diversão:


                                          Quatro anos e meio assistindo filmes diversas vezes na semana...dificilmente posso acreditar nessa distante vida dos anos 30 hoje, uma forma de vida que adotei voluntariamente de um senso de diversão. Mais de quatrocentos filmes - e eu suponho que teriam sido muitos mais se não tivesse sofrido ao longo do mesmo período de outras obsessões - quatro romances foram escritos, para não falar de um livro de viagens que me levou a alguns meses no México, distante da cúpula do prazer (*) - todos esses Empires e Odeons de um gosto extravagante e bizarro que nunca veremos novamente."

As resenhas são boa leitura por conta do alcance de Greeme e a astúcia de suas observações. Os filmes foram um gatilho para a vida, ou para sua alquimia romanceada. Por exemplo, ele sentiu-se deliciado com uma comédia de Wesley Ruggles, True Confessions [Confissões de Mulher], só porque havia perfurado a armadura realista da tela e descoberto as vibrações indisciplinadas do que chamamos comum.


Em seguida,  ofereceu um pensamento digno de um de seus personagens, horrorizado com o desgaste do mundo: 

                                   Eu recomendo uma visita rápida [a Confissões de Mulher]; o público, penso, acha-o extravagantemente chocante, porque o filme mediano está cada vez mais ditando como as pessoas devem se comportar - até mesmo no leito de morte. Lembro-me, deitado na cama, alguns anos atrás,um público ouvindo com fascinado horror a uma mãe chorando sobre uma criança que havia morrido súbita e inesperadamente após uma pequena cirurgia. Você não poderia questionar a tristeza terrível, mas as palavras que ela usou...foram as mais baratas, as mais improváveis, as mais mentirosas, que você já ouviu em dúzias de cinemas britânicos. Até o pai se sentiu embaraçado estando ao seu lado no meio da enfermaria e evitou qualquer olhar.

Essa mistura de horror e o hediondo nos faz lembrar de quão regularmente resistiu em elogiar Alfred Hitchcock. Para alguém que se deve acrescentar ter nascido somente cinco anos e vinte cinco milhas de distância, com uma sobra na poupança de ter um professor e um verdureiro para os pais. Talvez seja necessário ser um voyeur misantrópico para conhecer (e cortar) outro. Mesmo em 1972, após ter visto as posteriores e mais ricas etapas da jornada interior de Hitch, Greene manteve as opiniões baseadas nos filmes britânicos dos anos 30. Havia ele detectado então "um inadequado senso de realidade (...). Seus filmes consistindo de uma série de pequenas, 'divertidas' situações melodramáticas: o botão do assassino caiu no tabuleiro de bacará; as mãos de estrangulador do organista prolongando as notas em uma igreja vazia (...). Muito superficialmente ele constrói essas situações complicadas (não prestando atenção, no trajeto, às inconsistências) e então se desfaz delas; elas não significam nada, não levam a nada."

A reivindicação de Greene é justificada. Ainda que os truques, a indiferença à realidade, e mesmo o desdém de Hitchcock, possam ser também encontrados em Greene. Para não dizer nada dos contornos vagos das consequências católicas para os ambientes noir. Em ambos os conjuntos das obras, o quão o medo, o desejo e a solidão separaram os autores da realidade. Ambos os homens, tiveram dificuldades de expressar seus sentimentos mais fortes naturalmente; em ambos os casos isso resultou em uma desconcertante soberba de hostilidade julgadora, uma maneira de zombar de coisas preciosas. E em ambos os artistas sentimos a tristeza proscrita de eternos observadores. Suas obras podem subitamente ficar tensas com religioso suspense. Isso acontece quando a mulher recusa em The Wrong Man [O Homem Errado], e em The End of the Affair, um dos romances mais angustiantes de Greene, o amor é abandonado para que se retorne à prece permitida. 

Greene gostava de soar arrogante (talvez fizesse Deus se sentir um pouco melhor), mas era prático quando tinha que ser. Em 1937, escreveu uma peça curta, "Film Lunch", sobre  estar em uma festa  da MGM para a imprensa e ter que escutar a Louis B. Mayer. A escrita é embaçada - metade imersa na bebida da Metro, metade cochilando ao longo do discurso inócuo - mas a impressionante varredura da multidão escolhe os escritores que "inclinam-se para trás e sonham com cem libras por semana - e tudo que é pedido em retorno, é a imaginação estéril e a caneta morta."

Greene estimava uma carreira. Suas 101 páginas de tratamento para The Tenth Man foram compradas, e arquivadas, pela MGM. Em 1936 resenhou Laburnum Groove, de Carol Reed, favoravelmente, mas disse "O Sr. Reed, quando conseguir os roteiros certos, provar-se-á mais que eficiente." Porém, não foi apenas um oportunista; desejava ser testado e malhado. Avaliou, portanto, o drama da vida em termos de traição. Cedo ou tarde, caímos nela. Em seus romances, Greene é um abutre pairando em cima de uma ferida narrativa em primeira pessoa, ou aquelas autópsias entorpecidas em terceira pessoa sobre suas almas principais. Como A Burnt-Out Case se inicia: "O passageiro da cabine escreveu em seu diário uma paródia de Descartes: 'Sinto desconforto, logo existo!"

O cinema não se apega àquela voz irritante do eu. O Terceiro Homem começa com um narrador: "Não conheci a Velha Viena antes da guerra..." - e é o próprio Carol Reed lendo as linhas na versão britânica. Mas essa voz e sua vantagem em relação à narrativa nunca retornam e, portanto, perdemos a chance de uma diversão legal e impiedosa que observe Holly e Harry de sua breve dança para a cítara. Enquanto na novella (1) ou tratamento que Greene escreveu primeiro (e vendeu para Korda e Selznick), a coisa toda é narrada desse modo por Calloway, o policial militar interpretado por Trevor Howard.

Ele meio que imagina, meio que herda de Holly a conversa entre Lime e Martins na roda gigante. O filme se tornaria grosseiro dessa forma. Sem falar que o ponto de vista fatalista de Calloway é que define a maldade de Lime - maldade que é afastada da tela. Talvez essa vileza tivesse permanecido se Noël Coward tivesse interpretado o papel - o que foi cogitado inicialmente. Mas Orson Welles estava implorando para ser querido. Porém o charme de ribalta de Lime une-se ao encanto furtivo do mal na tela - quando observados da segurança ou nulidade do escuro. Voyeurs não podem ser juízes.

Suponha que Calloway fosse o núcleo sombrio e indefeso de O Terceiro Homem. Isso não seria difícil, já que Trevor Howard seria um protagonista ideal para Greene. Howard possuía uma aspereza triste, mesclada com emoção, e alguns indícios de não gostar de si próprio. Seria o único homem a interpretar Bendrix em The End of the Affair, a única voz para seu devaneio torturado

                               Sentei em minha cama e disse a Deus, Você a levou, mas Você não me levará ainda. Conheço Sua destreza. Foi Você que nos elevou e nos ofereceu todo o universo. Você é um demônio, Deus, tentando-nos a pular. Mas não quero Sua Paz e o Seu amor. Desejei algo muito simples e muito fácil: desejei Sarah por toda a minha vida, e Você a levou. Com Seus grandes estratagemas Você arruinou nossa felicidade como uma ceifadeira arruína o ninho de um camundongo. Odeio Você, Deus, te odeio como se Você existisse.

Por mais de sessenta anos teve sentimentos mistos sobre o cinema - somente aqueles legítimos. Ainda assim desejei que tivesse escrito um filme sobre Kim Philby (2) - outro papel feito para Howard - aquele consumado jogador desonesto da equipe, que tinha que ser tão reservado quanto um observador. Greene conheceu Philby e escreveu sobre ele, numa estranha mescla de compaixão e confissão: "Ele traiu seu país - sim, talvez o tenha feito, mas quem não teria cometido traição para algo ou alguém mais importante que um país?"

Philby poderia ter sido o mais problemático dos observadores de Greene, liderando a vida no clube, deslizando colegas pela rampa lubrificada. A admiração por Philby é chocante, quando se lembra como a carreira desse traidor matou outros. Motivos? Greene uma vez disse que preferia viver na União Soviética que nos Estados Unidos. Ainda que o viajante persistente conhecesse pouco desses dois países. De bases na elitista Albany, em Londres, e em Antibes, somente retratou a si próprio como vizinho de Philby em Moscou.

Essa visão foi o maior voo da imaginação de Greene, e poderia ser tanto desonesta quanto criativa. Algumas vezes, ambos ao mesmo tempo - daí o porque dele ter sido tão importante para os filmes. Mas não podemos esquecer que a testemunha secreta e torturada, atuava para seu povo. Harry Lime voltou como fantasma e jogador em sua própria vida. Baines, em O Ídolo Caído, observando o lento voo de um avião de papel que pode arruiná-lo. O homem em The Tenth Man que comprou o resgate de um covarde e com ele a humilhação de ser salvo; Fowler em O Americano Tranquilo olhando para a vida e a morte de Pyle - "Tudo tem dado certo comigo desde que ele morreu, mas como eu gostaria que existisse alguém de quem eu poderia dizer que estava arrependido."

Mas numa época onde todos nós podemos observar e espiar, a onisciência e outros dons divinos são aposentados.

Texto: Thomson, David. A Biographical Dictionary of Film. Londres: Knopf, 2010, pp. 4011-41.

Notas do Tradutor
(*) jogo de palavras com o título do livro de resenhas, que faz referência à sala de cinema.
(1) gênero literário que compreende um texto mais longo que o conto e mais curto que o romance, sem equivalente termo em português.
(2) Kim Philby (1912-1988) foi um dos nomes mais brilhantes da elite do Serviço Secreto Britânico, que praticou contra-espionagem, tornando-se um dos agentes duplos mais bem sucedidos durante a Guerra Fria até suspeitas pesarem contra si.

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