Filme do Dia: Guelwaar (1992), Ousmane Sembene



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Guelwaar (Senegal/França/Alemanha/EUA, 1992). Direção e Rot. Original: Ousmane Sembene. Fotografia: Dominique Gentil. Música: Baaba Maal. Montagem: Marie-Aimée Debril. Com: Mame Ndoubé Diop, Ndiawar Diop, Lamine Mane, Babacar Mbaye, Omar Seck,  Papa Momar Mbaye, Thierno Ndiaye Doss, Myriam Niang.
Guelwaar (Doss), nome pelo qual ficou conhecido o ativista político Pierre Henri Thioune,  de fé cristã, assassinado por explicitar todo o conluio entre lideranças locais e a ajuda internacional para manter a população miserável na dependência, é enterrado equivocadamente em um cemitério muçulmano. Seu filho, Barthelemy (Ndiawar Diop), que se considera cidadão francês e reclama de tudo e de todos, sobretudo com o policial Gora (Seck), vai até a aldeia muçulmana onde o corpo foi enterrado. Enquanto isso, sua mãe  (Ndoubé Diop) chora as dores da perda do marido, assim como do sofrimento que ele lhe causou não poucas vezes, maldizendo igualmente seu filho aleijado e sua filha prostituta Sophie (Diatta).  Os muçulmanos não concordam com a abertura da tumba, que consideram profanação máxima. A tensão aumenta e soldados da guarda nacional são chamados para impedir confrontos maiores entres os ânimos exaltados. Após escutar a outra parte, o Imã concorda, ele próprio, em exumar o corpo, para que nenhum cristão pise no solo do cemitério.
O tema das diversidades religiosas, assim como outras (de gênero, diásporicas, etc.) assomam mais uma vez na obra de Sembene, embora com sua tradicional diversidade em forma temática e de estilo, como se praticamente cada filme fosse algo diverso. Aqui, como em Mandabi, escuta-se não poucas vezes comentários demeritórios sobre o país. Boa parte deles vem, é verdade, do filho nacionalizado francês. E, com magistral engenhosidade, Sembene consegue mesclar humor e drama, comentário político e anedótico, quase nunca descambando para o proselitismo, e mesmo quando o faz, consegue fazê-lo com uma dignidade pungente, caso do discurso de Guelwaar diante das autoridades, momento igualmente de grande interpretação de Doss. Da mesma forma equilibra-se entre os detalhes miúdos que acercam uma situação que não se prolonga por mais que um par de dias, que trazem todo um tom local, sem necessitar dos recursos que caiam na chave do exotismo africano (tal como em Mossane) de flertes com o universo da fantasia, e com saborosamente discretos relances seja de humor – seja a amiga da filha prostituta a se vestir indecorosamente para a situação ou o imã que  blasfema afirmando que irá fazer sexo com a mãe dos moradores do povoado em momento de exaltação e quase confronto direto – seja de comentários sobre a situação feminina – embora reconhecidamente um respeitado líder, Guelwaar também é apresentado em seu lado mais humano; razão de tormenta para a esposa ou de riso para os amigos, quando um deles evoca o caso que ele teve com uma mulher casada, em que se fingia de idosa para chegar a casa da amante, até a farsa ser descoberta e ele sair escorraçado e nu do local (único flashback em preto&branco). Se o discurso de Guelwaar pode ser “desculpado” enquanto uma expressão mais do que de fato incomoda ao personagem, representação de uma visão consciente e talvez a mais próxima do realizador, em chave herdeira do melodrama (onde se afirma tudo o que se pensa mais intimamente), ainda que num viés político e não dos sentimentos pessoais, o único excesso retórico talvez seja o da imagem final, das crianças fazendo um tapete para que o cortejo fúnebre passe com os alimentos a serem entregues, em nome do prefeito populista, para o povoado em que Guelwaar foi enterrado equivocadamente. Nessa traçado, tecido com cuidado e sem ferir os protocolos de uma narrativa que potencialmente poderá dialogar com um público mais amplo, Sembene não deixa de apresentar convenções envolvendo igualmente o espírito de pertencimento nacional, forjado progressivamente, transformando a figura inicialmente mal humorada de Barthelemy, justamente quando esnobando o próprio país e se identificando como francês, em alguém que ao final faz o discurso que defende seu país, finalizando com a tensão permanente com o policial Gora – em percurso não muito distinto nesse aspecto, embora em chave completamente outra, de filmes como o melodrama clássico mexicano Primero Soy Mexicano (1950), um episódio do filme Revolución (2011), dentre tantos outros. Tocante em sua expressão de tolerância é a fala do imã que afirma que não se deve regojizar com o ataque de um urubu contra o corpo de seu inimigo, antes afastá-lo, lembrando que poderia ser o seu. A música bastante adequada, sobretudo demonstra ser uma variação sobre um tema que é do alcunha do protagonista, complementando de forma feliz esse quadro em que a figura ausente, continua presentemente a provocar polêmicas mesmo depois de morto, tornando-se talvez a imagem duplicada do griô, o sábio narrador tradicional e conselheiro que o próprio Sembene almejava para si. Channel IV/Doomireew/France 3 Cinéma/Galatée Films/New Yorker Films/WDR. 109 minutos.

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