Filme do Dia: As Boas Maneiras (2017), Juliana Rojas & Marco Dutra
Clara (Zuaa) é contratada para
trabalhar no apartamento de Ana (Estiano), que se encontra grávida e sofre com
o afastamento de toda a família. Uma cumplicidade surge entre as duas que se
desdobra em uma relação amorosa. Clara, no entanto, começa a perceber um
comportamento alterado de Ana em noites de lua cheia, quando se torna
sonâmbula. Certa noite, inclusive, ela a morde com ferocidade, deixando marca
forte em seu pescoço. Ana relata que o encontro que gerou seu filho foi encoberto
por certo mistério. Quando a criança nasce, no entanto, para o terror de Clara,
é algo monstruoso e inumano, provocando a morte de Ana. Clara decide, ainda
incerta, em adotá-lo. Ela passa a cuidar da criança, mantendo-a acorrentada em
um aposento secreto nas noites de lua cheia, quando essa se transforma em um
perigoso lobisomem pequeno. Outros cuidados incluem a não ingestão de carne, o
que ocorre quando Clara, agora farmacêutica, deixa o filho com a vizinha, Dona
Amélia (Moreira).
Criativo e inteligente o filme não
deixa de ser povoado, como boa parte da obra de Dutra (vide Quando Eu Era Vivo) de momentos
inspirados, talvez o mais marcante deles sendo, longe de qualquer dúvida, o que
“mãe” e monstro dão as mãos ao final entremeados por interpretações e diálogos
um tanto sofríveis, dignos de provocar risadas involuntárias, com a presença de
um elenco em geral fraco, sobretudo no que diz respeito a pouca naturalidade
das crianças, a exceção parcial do garoto Miguel Lobo, onde trivialidade e
expressividade se alternam em um equilíbrio delicado, como o do próprio filme,
mas igualmente presente na pouca força de Estiano. É Zuaa quem praticamente
carrega o filme nas costas, com sua encarnação de uma mãe coragem a lidar
pacientemente com as adversidades que o sobrenatural (e também o amor, algo
clichê, diga-se de passagem, por sua patroa) lhe trazem. A lareira virtual do
apartamento de Ana bem poderia servir como ilustração reduzida da proposta
visual do filme, transformando São Paulo numa metrópole decalcada da realidade,
inclusive com a luxuosa ajuda de efeitos digitais que acrescentam prédios
futuristas em sua paisagem cinza. Algo que funciona dentro da opção abertamente
fabular da narrativa. Como em Quando Eu Era Vivo, há uma primeira metade do filme em que o suspenso psicológico é
determinante e uma segunda em que o terror abertamente mostra mais sua cara, e
a cara é a de efeitos especiais e de maquiagem nunca vistos em qualidade
similar no cinema brasileiro – e, mais importante que isso, trazendo uma dimensão
complexa e relativamente multifacetada a própria besta; por esse aspecto, o
filme se encontra bem distante da precária segunda metade do filme anterior,
embora a mescla de soluções (como a da perseguição final a besta no melhor
estilo Frankenstein) e dificuldades
com o elenco tampouco torne a produção imune ao riso involuntário em vários
momentos, mais do que os evidentemente haviam sido pensados pelos realizadores.
Dentre as soluções criativas mais interessantes, até mesmo em termos de redução
de orçamento, encontra-se a narrativa em que Ana conta como Joel foi gerado,
acompanhadas por imagens desenhadas no estilo storyboard e de grande eficácia gráfica. Ou ainda o breve momento
em que flerta abertamente com o musical em que Clara e Dona Amélia interpretam A Canção da Espera. O filme parece igualmente brincar com a expectativa de uma
reversão de papéis entre criada e patroa (ao estilo de O Criado de Losey) por parte das demandas politicamente corretas
contemporâneas, até mesmo se se levar em conta da empregada ser negra, algo que
gradativamente será desconstruído. Não se trata de uma alegoria social como
tantas as que pipocam no cenário em que foi produzido e tampouco se pode
afirmar que consiga construir algo mais sólido em relação ao desejo na linha de
filmes como Carrie, a Estranha
(1976), de De Palma ou Sangue de Pantera
(1942), de Tourneur. Sua vinculação entre sangue e sexualidade, de longa data
no cinema, tendo em vista os filmes de vampiro, ganha uma roupagem
contemporânea algo evocativa de um filme como Grave (2016), de Julia Ducournau. Talvez seja quase impossível não
evocar tampouco Pixote (1980), de
Babenco, na cena em que Clara alimenta pela primeira vez a besta. Dezenove Som
e Imagem/Globo Filmes/Good Fortune Films/Urban Factory. 135 minutos.
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