Filme do Dia: Zero Kelvin (1995), Hans Petter Moland
Zero Kelvin (Zero Kelvin, Noruega/Suécia, 1995)
Direção: Hans Petter Moland. Rot.adaptado:
Lars Bill Lundholm&Hans Petter Molland. Fotografia: Philip Ogaard. Música:
Terje Rypdal. Montagem: Einar Egeland. Com: Gard B.Eidsvold, Stellan Skarsgard,
Bjorn Sundquist, Camilla Marteens.
Larsen
(Eidsvold), rapaz sensível e apaixonado afasta-se da jovem (Marteens) que ama e
de quem pretende tornar-se noivo para trabalhar para uma companhia de
exploração de peles em geleiras distantes da Groenlândia. Quando lá chega com o
representante da companhia terá que enfrentar uma tripla dificuldade: saudades
da amada; a companhia duplica a quantidade de pedidos para o ano seguinte e,
pior, a difícil convivência com os outros dois companheiros de choupana,
especialmente Randbeck (Skarsgard), rude caçador de grande experiência. Após
inúmeras dificuldades como a fuga do outro companheiro, o cientista Holm
(Sundquist) e diversas brigas com Randbeck, inclusive uma provoca o incêndio da choupana e de uma fuga nos
limites de sua resistência física - retorna à civilização e à mulher. Sem
dúvida alguma o mestre fotográfo Gabriel Figueroa estava mais que correto ao
afirmar que o cinema inexiste sem o conflito, referindo-se a malfadada
experiência de Welles no Brasil. O conflito permeia a trama do início ao final. Embora inicialmente o
foco do conflito pareça se encaminhar para a clássica relação entre o homem
culto e letrado frente ao rude - que no cinema rendeu, por exemplo, Zorba, O Grego e Dersu Uzala - , logo essa relação se mostrará ultrapassada por
outra mais complexa. Ainda quando lida inicialmente com tal relação, o filme se
distancia da condescendência, sentimentalismo e pieguice mesmo (como no caso do
então recente O Carteiro e o Poeta)
com que o tema geralmente vem sendo tratado ao longo da história do cinema.
A relação que se constitui vem apresentar ao que o
filme veio: trata-se de uma fábula que
reflete sobre a razão humana, e como toda boa fábula dispensa um realismo stricto sensu. Não há, por exemplo,
qualquer referência explicíta ao período em que a trama se desenrola, embora
pelo figurino possa-se situá-la entre o final do século XIX e o início do
seguinte. Cada um dos três homens além de personagens parecem encarnar
alegoricamente três tipos de razão. O jovem poeta que chega a "razão
humanista", o cientista a "razão positiva" e o caçador a
razão "instintiva". O conflito
maior ocorrerá entre a razão instintiva e a humanista, sendo o cientista sempre
positivamente neutro em todos os conflitos iniciais e, posteriormente,
permanecendo numa postura extremamente ambígua. Escarnando com a veia literária, musical, enfim humanista de
Larsen, Randbeck cantarola suas rudes canções desafinadamente. Ao contrário da
gentileza com os animais de Larson, Randbeck é extremamente bruto, afirmando
que só assim se obterá a disciplina. À excitação com que Larson lê e relê a
única carta que recebeu de Gertrude, sua noiva, Randbeck contará sobre suas
experiências em um prostíbulo.O desprezo que Randbeck nutre pela razão
humanista não é algo gratuito. Chegara a apaixonar-se certa vez e sua noiva
tentara transformá-lo em um cavalheiro. Flagrou-a posteriormente, no entanto,
com um outro homem. O refinamento e a cultura pareceram-lhe, cada vez mais,
como uma hedionda máscara para acobertar os instintos mais vis de forma mais
socialmente aceita. Apesar de ganhar os conflitos iniciais e subverter qualquer
esquematismo mais rígido, a razão humanista não exclui a técnica e logo
demonstra sua "superioridade": Larson traz mais caça que os
companheiros e logo adapta-se às adversidades do meio (rápido demais é bem
verdade). Porém tem como ponto fraco o sentimento de amor - seja pela jovem
Gertrude que o espera ou pela cadela Jane a quem tratará como um animal de
estimação - que é impiedosamente posto à prova por Randbeck, com todo o apelo
dos instintos viscerais do sexo e da morte. Em uma sessão mística Randbeck
acredita ter visto Gertrude mantendo relações com um militar - o que
impressiona bastante Larson que presenciara o efeito perturbador que um militar
provocara sobre a jovem em um desfile cívico.
Do início ao final do filme lutando para não ser
seduzido pela razão instintiva de Randbeck, Larson subjuga-o em diversos
momentos, porém só poderá ter completa segurança das virtudes de seu humanismo
quando elimina literalmente o que corporifica a razão instintiva. Tal fato não
deixa de servir de reflexão sobre a razão humanista e seus limites, em muitas
situações menos humana que a instintiva e a positivista. Após o retorno e
subsequente inocentamento do crime, Larson volta à sua existência burguesa
anterior e agora provavelmente "oficializada" com Gertrude. Porém os
ecos do instinto sobrevivem à morte de Randbeck e como uma consciência (ou sub)
tardia prenunciam uma existência de completa inadequação e tédio no asséptico
ambiente burguês (o extremo oposto do que costumava vigorar nas geleiras) de
Gertrude. Larson parece constatar tardiamente no final o quanto de hipocrisia a
sociedade teve de inventar para fazer com que a razão triunfasse sobre os
instintos, e o amor romântico (inclusive em sua versão liberal) burguês sobre o
sexo, para que só assim a sociabilidade pudesse ocorrer de forma menos
traumática. As declarações de amor de Gertrude no final, depois de toda a
experiência vivida por Larson, parecem aos seus olhos (e também aos dos espectadores)
uma pálida sombra de antes da jornada de Larson pelo seu próprio e então
desconhecido interior, como se um autômato houvesse substituído os gestos que
antes eram de graça, leveza e sinceridade e agora ele pudesse trespassar o
corpo/espírito de sua amada e percebe-la em toda sua superficialidade e
mecanicidade aterradoras. Norsk Film/Sandrews. 113 minutos.
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