Filme do Dia: Kundun (1997), Martin Scorsese



Kundun (Kundun, EUA, 1997). Direção: Martin Scorsese. Rot. Original: Melissa Mathison. Fotografia: Roger Deakins. Música: Philip Glass. Montagem: Thelma Schoonmaker. Dir. de arte: Dante Ferretti , Franco Ceraolo,  Speed Hopkins &   Massimo Razzi. Cenografia: Francesca LoSchiavo. Figurinos: Dante Ferretti. Com:  Tenzin Thuthob Tsarong, Gyurme Tethong,  Tulku Jamyang Kunga Tenzin, Tenzin Yeshi Paichang, Tencho Gyalpo,  Tsewang Migyur Khangsar,  Sonam Phuntsok,  Lobsang Samten,  Jigme Tsarong,  Robert Lin,  Kim Chan.
        Ainda com dois anos, jovem tibetano (Paichang) é reconhecido como a encarnação de Buda e o 14º Dalai Lama por Reting Rimpoche (Phunstok), que prova-o, fazendo com que ele escolha  todos os objetos que pertenceram ao dalai lama anterior em meio a objetos semelhantes. Passando a morar separado da família, o jovem (Tenzin) sofrerá com a solidão do sombrio palácio e se divertirá com o ensolarado palácio de verão. Com 10 anos (Tethong) já demonstrará um precoce senso de responsabildade, querendo saber tudo sobre as duas principais questões do momento: a exoneração de Reting como Regente, seguida de sua prisão e a ameaça iminente da China. Ele nomeia como novo regente, Taktra Rimpoche (Jigme Tsarong). Com a morte do pai (Khangsar), torna-se mais próximo da mãe (Gyalpo). As pressões da nova China comunista levam a negociação entre um emissário do governo chinês (Chan) e o Dalai Lama (Tsarong) que,  no entanto,  permanece silencioso em todo o encontro. Em encontros posteriores com Mao Tse-Tung (Lin), ficará encantado com o fato de o líder chinês comentar que sua mãe era budista, embora fique decepcionado com seu discurso que afirma que o Tibete é uma raça fraca e inferior devido a influência da religião, o proclamado ópio do povo, ser tão decisiva. A China invade o Tibete e mesmo resistindo,  inicialmente, o Dalai Lama se retira para o Nepal, depois da sugestão de seu conselheiro visionário,  deixando uma população dividida entre os que temem que sua saída enfraqueça a resistência do povo tibetano e os que temem que sua possível morte seja ainda pior. Porém,  no Nepal, receberá como péssima a notícia que ouve pelo rádio de que os conselheiros decidiram, em sua ausência, entrar em acordo com o governo chinês. Com alguns de seus assessores mais próximos, foge em uma dura jornada até a fronteira indiana, que passa a ser seu novo exílio. Lá, não reconhecerá a invasão chinesa e simbolicamente instituirá seu governo.
        Lidando com um material que dificilmente poderia ser apropriado com êxito pelo caráter internacionalista de uma produção do gênero, Scorsese não consegue ir além dos múltiplos e óbvios limites: da língua, já que falado em inglês, até a superficial e caricata visão dos chineses, mais evidente no ridiculamente simplista discurso de um não menos ridículo Mao, para não falar do próprio caráter meramente exótico com que é apreciada a cultura tibetana.  Ainda assim consegue ir além do estereotipo do budismo como uma completa dissociação com as paixões do mundo material, apresentando tanto a confirmação da iluminação do dalai lama, que reconhece os objetos de seu antecessor em dois momentos diversos, como as disputas e intrigas de poder que acompanham qualquer crença religiosa, representada pelo conflito entre Taktra e Reting. Tanto pelos  riscos de uma visão internacionalista sob uma cultura grandemente peculiar, que torna artificial e pouco verossímil o que é apresentado,  como pelo esmerado cuidado com a direção de arte, fotografia, figurinos e belas locações, o filme lembra O Último Imperador (1990), de Bertolucci. Por outro lado a minimalista trilha de Glass que ecoa do início ao final do filme, ainda que por vezes consiga criar uma atmosfera peculiar, associada ao esmero visual - embora ambos tenham sido melhor utilizados em Mishima (1989) de Schrader - acaba por provocar, no final das contas, um efeito anestésico e nivelador dos mais diversos sentimentos e situações apresentados ao longo da narrativa. Nos momentos em que pretende ousar, a situação também não vai além, seja na óbvia cena em que o aquário de peixes, uma das paixões da infância do Dalai Lama, é invadido pelo sangue dos massacrados tibetanos ou na pictoricamente estonteante cena do líder tibetano sobre centenas de cadáveres, com a câmera se distanciando para cima até todo o quadro se tornar uma abstração que lembra Jackson Pollock. Scorsese faz referência tanto a um filme de Méliès como a Henrique V (1945), de Olivier, ambos assistidos pelo Dalai Lama. Da mesma forma que a cena em que Mao discursa sobre um imenso retrato atrás de si, lembra o discurso de Kane, em Cidadão Kane, assim como a precoce separação da criança de seus pais e seu aprendizado para se tornar um líder. Já ao apresentar o carismático líder espiritual como uma figura humana, seja quando criança, teimando em comer alimentos que não são próprios à sua condição ou, já quando adulto, chorando ao saber das notícias sobre seu povo, Scorsese pretende criar um elo de identificação que vá além do respeitoso distanciamento de retratar uma figura de um patamar moral impossível de interação com o público, como já fizera em A Última Tentação de Cristo (1989). Walt Disney Productions / Refuge Productions/ De Fina-Cappa / Touchstone Pictures.  128 minutos.             

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