The Film Handbook#51: Douglas Sirk

Rock Hudson e Jane Wyman iluminados com a característica perfeição, no ácido retrato dos códigos morais burgueses, Tudo Que o Céu Permite/All That Heaven Allows

Douglas Sirk
Nascimento: 26/04/1900, Hamburgo, Alemanha
Morte: 14/01/1987, Locarno, Suíca
Carreira (como diretor): 1934-59

É irônico que durante os anos 50, o ex-Hans Detlef Sierck tenha tido seu momento mais bem sucedido em termos de apelo de público, sendo virtualmente ignorado pelos críticos. Ele agora é observado, no entanto, com um diretor de formidável inteligência que, apesar de sua proficiência pelo teatro clássico e vanguardista, realizou sua melhor obra no campo do melodrama.

Tendo estudado direito, filosofia e história da arte, Sirk se tornou profundamente - e bem sucedidamente - envolvido com o teatro alemão, dirigindo inúmeros clássicos ao longo dos anos 20. Em 1934 foi contratado pelo ilustre estúdio UFA e, após filmar três curtas, dirigiu seu primeiro longa-metragem (April, April!) em 1935. Repentinamente revelou um estilo intensamente emocional e chamativo, criando sentido e humor através de iluminação, composições, cenografia e música em Stützen der Gesselshaft/Pillars of Society (um estudo sobre a hipocrisia e ganância burguesas adaptado de Ibsen), onde paixões reprimidas finalmente ganham força em um catártica e simbólica tormenta marinha, enquanto em Recomeça a Vida/Zu Neuen Ufern>1, ambientado em grande parte numa colônia penal australiana do século XIX, seu cenário exótico e cáustico foi um perfeito pano de fundo para a história de uma mulher que sacrifica sua felicidade para ajudar um amante indigno.

A influência nazista crescente na UFA, em 1937, faz com que Sirk fuja da Alemanha para a França e Holanda, onde realizou dois filmes hoje esquecidos. Em 1939 vai para Hollywood através de um convite dos Warners, para realizar uma versão americana de Recomeça a Vida. O filme nunca foi realizado e foi somente três anos após que ele completou O Capanga de Hitler/Hitler's Madman, seu primeiro longa americano, sobre as represálias contra um vilarejo tcheco após o assassinato do  tirano nazista Heydrich. Poucos dos primeiros filmes americanos de Sirk são dignos de nota, no entanto, mesmo bem realizados e ambiciosos: O Que Matou Por Amor/Summer Storm, uma sensível adaptação de O Duelo de Tchekov, foi fortemente atmosférico; Sonha, Meu Amor/Sleep, My Love foi um elegante thriller psicológico de uma esposa em perigo na tradição de À Meia Luz, de Cukor; e Apaixonados/Shockproof, sobre o caso de amor condenado entre uma assassina e seu agente de condicional, foi um vigoroso thriller noir, escrito por Sam Fuller. Somente em 1950, quando assinou um contrato com a Universal, foi que Sirk encontrou seu verdadeiro nicho: após uma série de atribuições indesejáveis, dirigiria uma trilogia de musicais (Sinfonia Prateada/Has Anybody Seen My Gal?, Música e Romance/Meet me at the Fair, Mulher de Fogo/Take Me to Town>2) associados a divertida comédia, filmados em cores pastéis e imbuídos de uma nostalgia pela inocência da vida provinciana dos primeiros anos; de forma crucial, no entanto, o segundo apresenta um enredo que envolve corrupção política e o terceiro finaliza com uma virtuosa sequencia de perseguição, contrastando a realidade com a encenação de uma peça. Tais elementos subterrâneos sombrios e sutis assomariam a superfície de sua obra posterior.

Com Desejo Atroz/All I Desire, melodrama sombrio sobre uma atriz fracassada que retorna ao seu marido e crianças, e se torna vítima de fofocas provincianas sobre um antigo amante, Sirk pela primeira vez analisou o Sonho Americano e o que acreditava que desejavam. Uma vez atrás de outra, nos melodramas que se seguiram,  apresentou a América como o refúgio da hipocrisia, do elitismo de classe e do preconceito racial, da ganância material e da complacência moral; e ao enquadrar seu ataque a afluente sociedade do pós-guerra dentro das convenções melodramáticas (o que implica que a maldição do verdadeiro amor é de sempre ser problemático), foi hábil em criar uma obra ao mesmo tempo politicamente subversora e emocionalmente devastadora.

Em Tudo Que o Céu Permite/All That Heaven Allows>3 (feito após o surpreendentemente popular e insanamente controverso Sublime Obsessão/Magnificent Obsession) ele se voltou para uma convencional história de amor entre uma viúva e seu jovem jardineiro, numa análise do fim da inocência e idealismo americanos, com referências a Thoreau e imagens exuberantes da natureza contrastando com o ambiente claustrofóbico, de horizontes limitados e esnobe de uma pequena cidade. De fato, a família, tão frequentemente glamorizada por Hollywood, é observada como egoísta e inibidora, com os filhos adolescentes da viúva horrorizados com a ideia de outro homem manchar à santificada memória de seu pai morto. De forma semelhante, em Palavras ao Vento/Written on the Wind>4, uma arquetípica dinastia vinculada ao petróleo é assaltada por impotência, ninfomania, alcoolismo, auto-aversão e ciúmes entre irmãos, produtos envenenados da excessiva riqueza e do favoritismo patriarcal que culmina em um homicídio involuntário. O drama sórdido se torna palatável  e intensificado pelo delirante uso que Sirk faz das cores berrantes e não naturalistas e de um imaginativo simbolismo: uma mulher, lamentando a morte de seu pai e de seu irmão, assim como a perda de seu amado, chora sobre uma miniatura de uma torre de petróleo, um adequado simbólico fálico da ganância material e dominação masculina.

Os últimos três melodramas de Sirk foram não menos originais em seu uso das cores, movimento, cenografia e música, emprestando uma dimensão satírica e poder emocional a material potencialmente novelesco. Em Almas Maculadas/The Tarnished Angels>5 (uma soberbamente melancólica versão do romance Pylon de Faulkner, filmado em exuberantes cores monocromáticas), um grupo de acrobatas aéreos espelha a irresponsabilidade, insegurança e desespero auto-destrutivo da Depressão Americana; em Amar e Morrer/A Time to Love and A Time to Die, baseado em livro de Erich Maria Remarque e filmado na Alemanha, o caso amoroso em tempos de guerra entre um soldado em partida e uma jovem garota floresce por conta, mais que a despeito da, devastação e morte que os cerca; e em Imitação da Vida/Imitation of Life>6, a vida glamorosa da miséria à riqueza de uma atriz - metaforicamente distanciada da realidade - contrasta com a miséria emocional de sua amiga e criada negra cuja filha, que se faz passar por branca e também atriz, é conduzida pelo racismo da sociedade norte-americana a renegar sua própria mãe. Na realidade, o extravagante funeral da criada, pago por amigos que sua patroa nunca soube que tivera, foi uma comovente despedida e apropriado final para a carreira de Sirk em Hollywood; abandonando o projeto que havia escrito com Ionesco, aposentou-se do cinema em 1959 e retornou à Alemanha para retomar sua carreira teatral.

Ainda que seja amplamente conhecido que Sirk trabalhou com o melodrama menos por escolha que por necessidade, o gênero lhe permitiu confrontar diretamente a vida americana contemporânea, e fazê-lo com o máximo de impacto emocional. Ao adaptar os controversos e suntuosos artifícios das convenções melodramáticas às suas próprias necessidades, teve acesso a um público muito mais amplo que, de outra forma, sentir-se-ia desorientado de sua visão cínica e moralmente desencantada da América.


Cronologia
Influenciado por figuras literárias e um admirador de Dreyer, Sirk foi um sucessor de Griffith, Borzage, Leisen e John M. Stahl, cujos Sublime Obsessão, Imitação da Vida e Noite de Pecado/When Tomorrow Comes, Sirk refilmou (o último como Sinfonia Interrompida/Interlude). Apesar de (como Minnelli e Ray, com os quais pode ser comparado) ter impressionado Godard e outros realizadores da Nouvelle Vague, somente Fassbinder o emulou, refazendo Tudo Que o Céu Permite como O Medo Devora a Alma, enquanto os primeiros episódios da série de TV Dallas foram indelevelmente marcados por Palavras ao Vento.

Leituras Futuras
Douglas Sirk (Edinburgh, 1972) org. por Laura Mulvey e John Halliday. Sirk on Sirk (Londres, 1977) de Halliday é uma entrevista com Sirk.

Destaques
1. Recomeça a Vida, Alemanha, 1937, c/Zarah Leander, Willy Birgel, Viktor Staal

2. Mulher de Fogo, EUA, 1952 c/Sterling Hayden, Ann Sheridan, Philip Reed

3. Tudo Que o Céu Permite, EUA, 1956 c/Jane Wyman, Rock Hudson, Agnes Moorehead

4. Palavras ao Vento, EUA, 1956 c/Robert Stack, Rock Hudson, Lauren Bacall

5. Almas Maculadas, EUA, 1957 c/Dorothy Malone, Rock Hudson, Robert Stack

6. Imitação da Vida, EUA, 1958 c/Lana Turner, John Gavin, Juanita Moore

Texto: Andrew, Geoff. The Film Handbook. Londres: Longman, 1989, pp. 266-68.

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