Filme do Dia: O Homem Urso (2005), Werner Herzog
O Homem Urso (Grizzly Man, EUA, 2005). Direção e Rot. Original: Werner Herzog.
Fotografia: Peter Zeitlinger. Música: Richard Thompson. Montagem: Joe Bini.
Documentário no qual Werner Herzog esmiúça
a trajetória do ambientalista radical Timothy Treadwell, morto aos 46 anos
junto da namorada, devorados por um urso, depois de um convívio de 13 anos em
uma região do Alasca que é reserva natural repleta de ursos. Ainda que as
tocantes observações de Herzog (em voz off) soem por vezes forçosas, como
quando pretende extrair algo de premonitório na última imagem gravada de
Treadwell, poucas horas antes de sua morte, na dificuldade do mesmo de sair de
cena, dificuldade essa que o próprio filme já demonstrara ser habitual nas suas
filmagens, o resultado final é instigante e bastante próximo do universo
ficcional do próprio Herzog. Assim, como em suas obras de ficção tais como Aguirre (1972) e Fitzcarraldo (1982), a personagem de Treadwell, evocada a partir
das suas próprias imagens (coletadas de um arquivo de mais de 100 horas de
gravações), é de alguém no limite entre a sanidade e a loucura, completamente
obcecado pela causa que acredita ser a razão de sua própria existência. Talvez
o ponto forte do filme seja que, como em seu universo ficcional, não exista
nenhuma preocupação moral ou desejo de explorar o bizarro apenas pelo próprio
sensacionalismo que daí poderia advir. No máximo, chega-se a roçar nessa
dimensão sensacionalista quando se apresenta cenas do próprio Herzog escutando
com um fone de ouvido o material sonoro que registra o momento em que Treadwell
e sua namorada foram devorados, porém o que se sobressai é um profundo
interesse do cineasta por essa figura levada a seguir com sua missão até o
final, enquanto metáfora da própria condição humana levada a seu extremo.
Tampouco Herzog deixa de complexificar o próprio retrato que Treadwell procura
construir de si mesmo, apresentando também sua difícil adaptação às regras
sociais e uso de drogas na juventude e o fato de ocultar que ocasionalmente
levava garotas para suas peregrinações junto aos ursos. Muitas das evidências o
cineasta irá encontrar nas próprias imagens coletadas pelo ambientalista,
enquanto outras serão fornecidas por seus amigos, pais, assim como pessoas que
estiveram diretamente envolvidas com a sua morte, tais como o médico legista
que resgatou os restos mortais do casal, outro personagem que bem poderia ter
sido coadjuvante de uma ficção do cineasta. Herzog nem mesmo deixa escapar o
que ele acredita serem momentos fugidios de beleza involuntária nas imagens
captadas por Treadwell, tais como o de uma vegetação esvoaçante evocativas das
cenas inicias de seu O Enigma de Kaspar Hauser (1974) ou o registro das patas de uma raposa selvagem sobre sua
barraca de dormir. Tampouco deixa de frisar que apesar dos vários pontos em
comum com o seu retratado, Herzog diverge radicalmente de sua concepção
sentimentalista e romântica da natureza, numa bela passagem em que afirma nunca
ter visto no rosto dos animais filmados pelo naturalista nada além da
indiferença e alheamento. É o seu caráter predatório e o quanto ela se torna um
empecilho para os delírios humanos que o fascina, como já demonstrara em sua produção
ficcional. O que o filme deixa patente, ainda que não explicitado em palavras,
é o quanto essa idealização de Treadwell fizera de si mesmo como protetor dos
ursos era um verdadeiro sintoma de sua crescente inadaptação ao mundo dos
humanos – nesse sentido, sua morte advindo do fato de retornar para o seu
acampamento em um período de inverno no qual os ursos que conheciam haviam
partido para hibernar, após um desentendimento com funcionários do aeroporto.
Há uma tentativa limítrofe de abandonar a dimensão humana para adentrar na
animal e o próprio Treadwell afirma o quanto ele fora o ser humano que
convivera mais tempo com os ursos após a instituição da humanidade. A dimensão
paranóica e obsessiva de seus dias finais também é registrada em um longo trecho
em que Treadwell vocifera contra as autoridades do parque ou se sente
completamente amedrontado com a chegada de visitantes ao local. Talvez a melhor
opção para o final fosse a poética imagem de Treadwell se afastando seguido por
uma dupla de ursos às margens de um riacho, próxima de um quadro pastoral do
auge do romantismo como os que influenciaram algumas das imagens de Kaspar Hauser. Discovery Docs/Real Big Productions para Lions Gate Films. 103 minutos.
Comentários
Postar um comentário