Hora de Descalçar as Chuteiras



A vitória da Alemanha na final fechou com justiça poética e prosaica a Copa do Mundo no Brasil. Quem venceu foi a equipe mais organizada e coesa, com jogadores versáteis e em constante movimentação, que controla o ritmo das partidas, acelerando no momento do bote fatal. O golaço de Götze no finzinho mostrou que a disciplina tática não basta: é preciso engenho e arte para superar um adversário aguerrido.

A simpatia e o jogo de cintura dos alemães fora de campo também surpreenderam brasileiros e visitantes. Só os mais casmurros viram nisso uma estratégia fria para conquistar o apoio da torcida nacional.

Mas e nós, brasileiros, o que tiramos desse grande evento? Do ponto de vista estritamente futebolístico, que talvez nem seja o mais importante, a derrota por 3 a 0 para a Holanda, depois da acachapante goleada sofrida diante da Alemanha, confirmou uma impressão que os mais lúcidos já tinham desde o início do torneio: o Brasil foi rebaixado para uma espécie de segunda divisão do futebol mundial.

Retomar seu lugar na elite vai depender muito menos de discursos exaltados, nostálgicos ou messiânicos do que de uma reformulação radical de mentalidade e sistema de trabalho. Em poucos dias a postura e as palavras da dupla Scolari-Parreira finalmente se revelaram em todo o seu tosco anacronismo.

Ausência de autocrítica

As entrevistas da comissão técnica – e também dos jogadores – depois do duplo desastre chegaram a ser assustadoras, em sua incapacidade de ver e compreender o que estava acontecendo. Parecia que tudo tinha sido um acidente, um detalhe, um “apagão”, e não o resultado de anos e anos de insistência num caminho errado, que passa pela arrogância, pela crença mágica no talento de um ou dois craques, pela “mística da amarelinha”, pela falta de treinamento e preparação. Scolari falava da conquista da Copa das Confederações (esta sim, quase circunstancial) como se fosse do mesmo grau de importância de uma Copa do Mundo.

Mas já falamos sobre isto aqui, em textos anteriores. Cabe agora examinar um pouco o que fica de legado simbólico, imaterial, para o país, já que o legado material, ao que parece, não irá muito além de aeroportos remodelados e estádios elitizados – quando não transformados em elefantes brancos que dificilmente ficarão cheios de novo (Manaus, Cuiabá, Natal).

Do ponto de vista da psique nacional – com toda a licença que utilizar esse expressão exige –, a análise mais brilhante que li foi um ensaio publicado na Folha de S. Paulo pelo psicanalista e professor de literatura Marcio Seligmann-Silva, sobre a rapidez com que elaboramos em comédia a tragédia da derrota para a Alemanha.

De uma perspectiva mais modesta e subjetiva, proponho que atentemos para algumas possíveis lições, ou no mínimo constatações, trazidas pela Copa. Divido-as em tópicos por uma questão de clareza.

Pátria em chuteiras?

De todas as frases memoráveis de Nelson Rodrigues repetidas à exaustão em épocas de Copa do Mundo, talvez a mais nefasta seja a de que “o escrete é a pátria em chuteiras”. Sem entrar no mérito escorregadio da própria noção de “pátria”, o fato é que a sentença rodriguiana induz a uma associação direta entre a seleção de futebol e valores como honra, soberania e integridade nacionais. Com isso, estamos a um passo de identificar a participação na seleção como uma espécie de serviço militar, de dever cívico e, não raro, bélico.

Está na hora, a meu ver, de a pátria se enxergar como uma república, uma nação entre outras, e descalçar as chuteiras do nacionalismo e do ufanismo.

E já que falamos em Nelson Rodrigues, outra expressão sua repetida a todo momento é a que fala do nosso “complexo de vira-latas”. Qualquer crítica – seja ao time, à organização da Copa, à condução do país – é rechaçada e desqualificada como vira-latismo, encerrando a discussão.

Talvez um de nossos problemas culturais crônicos seja a tendência em transformar grandes artista e criadores (de Guimarães Rosa a Glauber Rocha, de Clarice Lispector a Caetano Veloso, passando obviamente por Nelson Rodrigues) em oráculos infalíveis, cujas sentenças podem ser usadas a torto e a direito, como num manual de autoajuda.

Imprensa torcedora

Nunca ficou tão claro como nesta copa o quanto boa parte da nossa imprensa esportiva, sobretudo a televisiva e radiofônica, trata seu público de modo paternalista e infantilizador. A cobertura da seleção, em geral, é totalmente chapa-branca. Com raras exceções, os repórteres são torcedores, “amigos” dos jogadores e do treinador, exaltam sempre o clima de família e camaradagem, jamais questionam, jamais investigam. Nem vou falar do narrador mais famoso e seu discurso maniqueísta primário, para quem o adversário sempre “entra na maldade”, enquanto o brasileiro, em lance igual, “mostra muita disposição”.

Mesmo nos telejornais, a abordagem do futebol é vista como uma espécie de recreio. Depois de relatar com rosto sisudo mil atrocidades cometidas mundo afora, o apresentador ou apresentadora abre um sorriso e diz: “Agora, seleção brasileira”. Como se, com essas palavras mágicas, estivessem dizendo: “Nos próximos minutos vamos tapear você com o mais acrítico otimismo, todos juntos na mesma emoção”.

Não admira que, ao cabo de uma cobertura tão idílica, quando vem a debacle, o narrador fique sem palavras, a repórter chore e a desorientação seja geral, como se tivesse ocorrido um desastre natural, um “ato de Deus”. Não foi só agora que isso ocorreu, mas também em 1998, em 2006, em 2010. A imprensa, com as exceções de praxe, não fornece a seu público a informação crítica necessária para compreender os fatos e seu encadeamento. Age, no mais das vezes, como reforçadora de estereótipos, preconceitos e superstições.

A descoberta do outro

Um clichê persistente em nossa crônica esportiva e entre torcedores é o de que “o Brasil só perde para o próprio Brasil”. Ou seja, o adversário só existe como sparring, como coadjuvante, não como sujeito com qualidades e movimentos próprios. Parece incrível, mas ouvi isso até mesmo depois da goleada histórica de 7 a 1 para a Alemanha: “Perdemos de nós mesmos”.

Minha esperança é de que, tendo convivido durante um mês com seleções das mais diferentes partes do mundo, tendo visto em campo o desempenho melhor ou pior, mais frouxo ou aguerrido, mais técnico ou mais vigoroso, dessas dezenas de equipes, boa parte dos brasileiros tenha aprendido a ver o outro como alguém que não necessariamente se amolda a nossa visão onipotente do mundo futebolístico.

Claro que tudo o que foi dito acima está interligado: ufanismo compulsório, imprensa torcedora, dificuldade de enxergar o outro. Se a Copa do Mundo tiver servido para abalar esses pilares carcomidos mas persistentes, terá sido um aprendizado e tanto.

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