Cristiano Burlan, um relato de vida – 5

JC – Como sua mãe foi para Uberlândia?
CB – Morávamos no Capão Redondo, meu pai batia muito nela, bebia, mal sustentava a casa. Tinha um borracheiro em frente, onde eu fazia bicos. Fiquei amigo dele. Ele tinha um parente em Uberlândia. Ele e minha mãe começaram a ter um caso e ela fugiu com ele, me avisou, eu nunca julguei minha mãe por isso, ele a tratava muito bem e ela acabou indo para Uberlândia.
Bom, meu pai foi e voltou a casar com ela. Ele morreu em Uberlândia, está enterrado lá. [...]. Um dia recebo uma ligação de minha irmã, minha mãe tinha um namorado, uma pessoa estranha. Em 2010 passei o Natal com ela. Voltei, fiz o Sinfonia [de um homem só]. Uma semana depois de terminar o filme, minha irmã me liga dizendo que ela foi assassinada pelo namorado, um homem soturno, ciumento. Ele a enforcou com um fio. Minha grande crise agora é se eu faço um filme sobre isso ou não. E a coisa mais sinistra é que talvez eu faça e com dinheiro púbico ainda, pela 1ª vez. Fico me perguntando: depois de falar de todas as mortes da minha família, vou falar sobre o quê?
Fiz o Amador porque eu precisava me afastar. Agora vou fazer o Hamlet, talvez eu queira falar sobre coisas não tão duras para mim, falar sobre o próprio cinema ou sobre o teatro, sobre minhas paixões, são mais tranquilas, relax. Ao mesmo tempo tá sendo um aprendizado. Será que é possível realizar alguma coisa onde você não se coloca na 1ª pessoa, será que é possível fazer cinema se sua câmera não for uma via de mão dupla? É possível filmar um rosto se ele não te comove? Ou uma paisagem ou uma parede branca que seja. Acho que tou em crise com o cinema, nunca tive, mas acho que essa crise é boa.
JC – Várias vezes sua mãe fugiu da violência do seu pai. Por que você nunca a acompanhou?
CB – Porque minha mãe era mais forte que meu pai e eu sempre soube que meu pai ia ter um fim trágico também, como aconteceu. Meu pai ficou aqui em São Paulo e São Paulo é a minha cidade e tenho uma relação de amor e ódio com essa cidade. Já tentei ir para outros lugares. Já perdi muita coisa aqui e já ganhei também.
Minha mãe foi a pessoa mais importante que tive na vida, mesmo sabendo que sou adotivo, mas isso não me importa mais. Era uma mulher lindíssima, um ser humano incrível, o pouco de amor e carinho que tenho pelas pessoas, pelas coisas, foi ela que me passou, ela que plantou em mim. Se estou vivo aqui hoje, eu devo a ela. Uma pessoa muito amorosa.
JC – Quando vocês estavam em Santa Catarina, você se comunicava com ela?
CB – Não. Eu nunca briguei com minha mãe, eu nunca tive um atrito, nunca. Ela era minha amiga. Quando ela vinha a São Paulo, a gente saia para jantar, ia ao cinema, ela adorava essas coisas. No Copan [CB morou um tempo no Copan] ela me visitou em 2010. Sinto falta dela. Ela sofreu muito. Por mais que tenha tido uma morte violenta, eu percebo a morte dela como um alivio, por que nenhum ser humano merece ter uma vida tão miserável como ela teve.
E aí, esse silêncio sepulcral?
JC – Vamos acabar aqui?
CB – Vamos, tá ótimo. – Não falei da Legião Estrangeira!
JC – Verdade, continuamos.
CB – Eu trabalhei num restaurante durante um ano em 2 períodos, estava decidido a ir pra Europa. Queria ser ator na Europa. Não fazia nada na vida, só trabalhava e guardava dinheiro e consegui. Em Barcelona me apaixonei por uma marroquina maravilhosa de cintura fina e bunda grande, melhor amante que tive na vida. Ela fugiu de mim e foi para Tanger. Fui atrás dela e fiquei um pouco lá. A família dela era meio bandida e me convidou a me retirar do Marrocos. Precisei fugir. Com essas viagens todas, minhas economias acabaram. Eu não consegui fazer teatro, me juntei a um grupo que fazia super 8 e filmamos muita coisa, tudo se perdeu.
JC – No Marrocos?
CB – Em Barcelona. Depois fui a Madri, dei uma volta pela Europa, e voltei a Barcelona, onde tinha uns amigos. O dinheiro acabou e meu amigo voltou para o Brasil. Fui para Madri, dormi uma semana na rua, passei fome, mas eu passei fome também em São Paulo. Volto a Barcelona. Consigo um trabalhinho e conheço um brasileiro que estava indo para a Legião Estrangeira. Ele me falou que lá tinha comida, moradia. Pegamos um ônibus para Perpignan, nos Pirineus, me alistei. De lá me levaram para Aubagne, a 15 km de Marselha. Fiquei 2 meses, foi difícil sair de lá porque se eles te mandavam embora, você recebia 100 francos e se pedisse para sair era 50 francos. Eu recebi treinamento militar, mas não me tornei legionário, são 6 meses para se tornar legionário. O que é a Legião Estrangeira? É parte do exército francês que contrata mercenários, muita gente da Europa e do mundo vai para lá. A 1ª pergunta que te fazem: já matou alguém? Porque aqui não tem problema, a gente aceita você, só tem que informar se você matou alguém no seu país, senão a gente descobre pela Interpol.
Tinha aquela aura romântica da Legião. Me lembro de ter lido Diário de um ladrão de Jean Genet, onde ele conta a experiência dele na Legião, foi para Djibuti na África. Mas a Legião não é tão romântica. Descobri quando cheguei lá. Você estuda francês, leva porrada, acordam você às 3 da manhã num frio danado. Bom, recebi treinamento de soldado, foi uma experiência interessante, bizarra, parece que foi um pesadelo. Mas eu fui legionário, fui soldado na França.
JC – Isso ocorreu quando?
CB – Em 97.
CB – Quando saí da Legião, eles me deixaram em Marselha com dinheiro. Fiquei 3 noites na noite de Marselha, que é maravilhosa. Eu quase fui trabalhar com córsegos. Na Legião fiz amizade com um córsego, o tio dele era mafioso na Córsega. Você é brasileiro, é bom soldado, atira bem – vamos trabalhar pro meu tio! E quase fui parar na Máfia da Córsega. De novo a marginalidade me chamava, mas eu sou romântico para ser bandido. Eu poderia ter ficado na Europa, me tornado um bandido mafioso, claro, ia ser “capo” como eles falam – soldado raso, porque nessas máfias, você tem que ser da família e do lugar. Mas foi uma experiência estranha, no mínimo bizarra. Quando eu conto, as pessoas acham que é mentira.
JC – E não é mentira?
CB – Não é mentira, tanto que eu tenho documentação que fui legionário... Não fui para Córsega, fiquei 3 dias em Marselha, gastei meu dinheiro com mulheres, drogas e bebidas. Quando eu tinha 21 anos, era insuportável, arrogante, queria engolir o mundo. Se falassem não para mim, era sim. Tudo o que eu tinha vontade eu fazia. Diferentemente dos meus amigos do Capão, que entravam na bandidagem e usavam a força, eu tinha uma lábia tremenda. Só para você ter uma ideia, quando voltei a Barcelona eu decidi ser jogador de futebol. Fui até o Atlético de Madri, ofereci meu passe para o presidente – consegui uma reunião com o presidente – fui até Maiorca, o que não deu certo, fui para Palma, peguei um navio, lá arranjei um trabalho, tentei jogar futebol, não consegui. Trabalhei no porto, limpando casco de iates. Depois descobri que talvez a Europa não fosse meu lugar e voltei a Barcelona, comprei uma passagem de volta e retornei ao Brasil.
JC – Você consegue dinheiro com facilidade.
CB – Consigo, sou trabalhador, eu consigo trabalho com facilidade, trabalho bem, sou dedicado, obsessivo, aí consigo pagar as contas.
JC – Volte um pouco para trás, você tinha 21 anos e não suportava um não. Acho que grande parte da violência juvenil da periferia é de jovens que não suportam o não, e por um não qualquer podem matar.
CB – Ou morrer.
JC – Ou morrer. Fale do não.
CB – Primeiro cê tem a sensação que você já é um não. Você não tem direito a uma boa alimentação, não tem direito a uma roupa bonita, a uma boa educação, a uma casa confortável. Então o não faz parte de sua personalidade. E vivendo essas situações limítrofes, contato com violência e morte, isso te deixa um pouco audacioso. Tua família já tá fodida, tua família já morreu, cê acha que não vai chegar a lugar algum, cê não tem mais nada a perder, foda-se tudo isso! Então não me venha com não se eu acho que é sim, eu vou lá e faço! Eu não pergunto, eu faço primeiro, porque sei que o não já está dado para mim, entendeu?
Você perde o medo das coisas, isso é perigoso. Meu irmão era assim, muito mais do que eu. Aí você tem contato com essas situações perigosas do dia-a-dia, quando você vai de embate a elas, você fica inconsequente, mas essa inconsequência vem dessa relação – foda-se, não tenho mais nada a perder. Vou ficar aqui esperando as coisas acontecerem, para quê? E como parece que sempre te roubaram alguma coisa, o roubo tem um pouco a ver com isso. Eu aproximo o cinema do crime, fazer filmes é um ato criminoso, eu me sinto no direito de pegar o que é meu, o que me foi tirado, você nasce com isso. Uma falha de caráter? Talvez seja, mas você nasce com isso.
JC – O que é uma falha de caráter?
CB – Isso de você subtrair alguma coisa que não é sua, é de outra pessoa! Mas a primeira coisa óbvia nesse país são as diferenças sociais, é um país onde pouca gente tem muito e muita gente tem pouco e essa conta não bate. Uma hora o morro vai descer no asfalto e isso já tá acontecendo, as pessoas não falam disso, mas estamos à beira de uma guerra civil. As pessoas não querem perceber, os sintomas são fortes, é possível que essa eclosão venha.
É só o nosso governador do PSDB, neonazista, liberar a polícia para meter bala, isso vai acontecer. Numa manifestação dessas, se a polícia de choque tem a ordem do governador: reaja á bala porque eles estão batendo em vocês – vai morrer muita gente e quando morre muita gente, se precisa de um mártir, entendeu? Tou sendo radical, mas falta um mártir!
Vivemos uma pré-guerra civil. Eu percebo isso nas ruas, não ando de carro, eu tou incluído na corrente sanguínea da cidade pelos dois lados, daqui e do outro lado do rio. A insatisfação é geral. Quando a massa se junta, você não tem controle. Cada vez mais essas pessoas estão nos shoppings, nessas casas neoclássicas cercadas por muros e câmeras de segurança, como se isso segurasse alguma coisa, não segura. À hora que o morro descer, vem como uma onda, não tem líder, isto é o pior. Pode ter até pensamentos políticos e ideológicos, mas na hora que a histeria toma conta, não tem líder, aí é barbárie. Agora foi! Falei muita bobagem?

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