Cristiano Burlan, um relato de vida – 1

Entrevista realizada dia 30/01/14 na minha casa. Moro no Copan. Uma primeira tentativa feita na véspera não tinha funcionado por motivos ténicos.

JC – Continuemos, a pergunta inicial é essa , você nasceu, onde, em que família?
CB - Nasci em Porto Alegre em 1975, dia 21 de agosto, numa família de proletários da zona norte num bairro chamado Sarandi. Sou primogênito de uma família de 5 filhos, meu pai se chamava Vânio e minha mãe Isabel. Meu pai já faleceu e minha mãe também e um dos meus irmãos, Rafael, também morreu. Agora de uma família de sete somos em 4.
JC – Como era a vida em Porto Alegre?
CB - Sempre foi dura. Minha mãe era empregada doméstica e meu pai pedreiro, fazia serviços gerais. Muito cedo foi vitimado pelo alcoolismo e isso o tornou uma pessoa violenta e dura.
JC – Ele batia na sua mãe?
CB - É, um pouco sim, bastante na verdade. Mas ela reagia, porque ele era menor que ela, ele era baixinho e ela, uma mulher alta, então a porrada comia solta, desde muito jovem.
JC - Em você também?
CB – Pouco.
JC - Ontem, você disse que não suportava ver sua mãe humilhada, que humilhação?
CB - Na ultima fase da vida dela, quando morava em Uberlândia, eu me lembro de visitá-la e ela era empregada doméstica de algumas famílias ricas. Eu até te falei que uma dessas famílias eram os Naves [ref. ao filme O caso dos Irmãos Naves, de Person], ela era faxineira de um deles, eles pagavam mal, não só os Naves, as outras famílias também. Aquela sensação de perceber que sua mãe no final da vida, depois de uma vida tão sofrida, ainda tava limpando a merda dos outros e de pessoas insensíveis que pagavam pouco e a exploravam muito. Eu não sei se ela se sentia humilhada mas eu me sentia humilhado por ela. Ela precisava trabalhar, questão de sobrevivência, e a minha impotência de não poder mudar aquilo, a vida inteira percebendo isso.
JC – Voltamos a Porto Alegre: você ia à escola?
CB – Ia. Eu sempre fui bom aluno mas sempre achei que tive maus professores, tive poucos professores interessantes. Em Porto Alegre a escola era melhor. Em São Paulo, estudei numa escola pública no Capão Redondo, o nível era bem baixo. Eu terminei o  o 2º não terminei.
JC – Como você passa de Porto Alegre ao Capão Redondo, qual foi a trajetória?
CB – Depois de muita violência, minha mãe decide abandonar meu pai, ela foge para São Paulo. Meu pai vende nossa casa, casa com outra mulher que era alcoólatra também, fomos morar em Santa Catarina.
JC – Nesse momento já tem irmão?
CB – Sim. Éramos 3, eu, Rafael e Ricardo. Em São Paulo nasceram a Kelly, a menina, e o Tiago, meu irmão que hoje tá preso.
JC –Tiago é o mesmo nome do seu amigo?
CB – Sim, meu amigo que aparece na praia [em Mataram meu irmão]... Meu pai casa com essa nova esposa, me lembro até o nome dela – Sandra – era violenta, essa batia muito na gente, eu e meus irmãos passamos um ano apanhando. Minha mãe fica sabendo. Ela volta, meu pai manda a mulher embora, eles se casam de novo e viemos para São Paulo. Me lembro que essa viagem foi estranha, viajamos num caminhãozinho fechado, um baú, toda a família atrás.
JC – Porque isso?
CB – Porque não tinha dinheiro para o ônibus. Era uma mudança e a gente veio nesse caminhão baú. Chegamos aqui e fomos morar na Vila Joaniza, um quarto e cozinha onde morava meu tio. Passamos um mês lá, 15 pessoas dentro desse quarto e cozinha.
Depois meu pai conseguiu um trabalho na USP, lá ele conheceu um engenheiro que trabalhava na COHAB, e conseguiu um apartamento no Capão Redondo.
JC – Como ele conseguiu emprego na USP? O Capão Redondo não fica perto da USP.
CB – Um pouco até! É zona sul também. Um tio meu trabalhava no FUNDUSP , era amigo desse engenheiro, que era diretor de uma Fundação naPolitécnica, e aí muito rápido ele conseguiu trabalho e casa.
JC – Trabalho de quê?
CB – De eletricista.
JC – Ele bebia ainda?
CB – Bebia, sempre bebeu, a vida inteira. Parava quando entrava no AA (Alcoólicos Anônimos), mas era alguns meses só. Quando tinha recaída, voltava a beber com mais voracidade e ficava mais violento. Mas o problema do meu pai não era o álcool.
JC – Era o quê?
CB – Era uma tristeza profunda, frustração de não ter realizado as coisas que ele desejava, de que ele nunca me falou, mas tava no rosto dele. Aquela amargura das pessoas que não têm saída.
JC – O desejo de realizar o quê?
CB – Não sei, talvez ter sido um pai melhor, ter tido outra profissão. Os homens da minha família são... eu não sei se eles são border line, não sou especialista para definir isso, mas eles são sonhadores, têm aptidões, aprendem as coisas rápido, têm uma memória de elefante, têm uma sensibilidade extremada, e são todos loucos. Ou morrem de tristeza, ou morrem por morte matada ou morte morrida! É a sina dos homens da minha família. Eu tenho um pouco de medo disso. Quando entrevistei minha irmã para o documentário, ela falou dessa sina das mortes trágicas da nossa família. Ela olha para mim e pergunta: será que a gente vai ser assim também? Será que eu vou ser assim? Senti que ela tava perguntando para mim. Ás vezes eu sinto que meu fim também é trágico, uma morte bem bizarra. É meio soturno, mas é um pensamento que me acompanha há muitos anos.
JC – Todo dia?
CB – Todo dia.
JC – Voltemos ao Capão, os amigos, cê tinha que idade?
CB – Eu cheguei com 9 10 para anos, e saí de lá com 17.
JC – Bastante.
CB – 8 anos. Nós éramos uma turma de 12 – 10 morreram assassinados.
JC – Turma da escola?
CB – Turma da escola e de futebol ali do bairro. 10 morreram assassinados. Desses 10, 2 se tornaram bandidos e os outros 8 morreram por tar no lugar errado na hora errada ...
JC – Quem mata?
CB – A polícia. A polícia. Todos morreram pela arma da polícia e por uma polícia que acho a mais violenta, não tenho esses dados, mas deve ser uma das mais violentas do mundo, que é a ROTA. Tem até um clichê que se usava na época do Maluf: a ROTA atira primeiro, depois pergunta quem é. A propaganda do Maluf era essa. Se ele voltar ao poder, a ROTA vai para a rua. É um esquadrão de extermínio com legitimidade para matar. Isso existe até hoje, os números aparecem mas as pessoas se acostumaram. Ficou normal saber que as pessoas são assassinadas pela ROTA na periferia. São Paulo é uma cidade estranha pra mim, porque depois que eu atravessei o rio, parece que...
JC – Que rio?
CB – O rio Pinheiros , o rio Tietê.
JC – Ah, sim!
CB – As pessoas burguesas vivem dentro desse quadrilátero cercado por esses 2 rios.E toda a sujeira está fora desses rios. Na verdade eu acho que é o contrário, ela tá aqui dentro. Algumas pessoas dizem que você tem que ir pro trabalho de bicicleta. Como você vai falar para alguém que mora a 45 km do centro da cidade, uma cidade cheia de morros, que tem que deixar o carro ou o transporte público e ir trabalhar de bicicleta? É uma falta de consciência da geografia da cidade...
Foi uma infância muito violenta. Mesmo abordando a violência em alguns trabalhos meus, eu gostaria de não ter passado por isso. Isso deixa uma marca indelével.
JC – Qual é essa marca?
CB – Essa dor do imponderável, quando você percebe que as coisas têm finitude, o homem é um animal estranho, ele nasce sabendo que vai morrer e não pensa nisso. Quando você tem contato com a morte, tua perspectiva de vida muda. Eu não sei como é com as outras pessoas, comigo foi assim. Eu tinha 11 anos, tava jogando futebol com amigos numa quadra da escola e a ROTA chegou. Tinha um garoto fumando baseado e eles já chegaram agressivos e porque alguém falou alguma coisa, eles sacaram as armas e mataram 3 garotos na minha frente. Um deles era meu amigo e deram um tiro na cabeça. Foi extermínio. Foi a primeira vez que presenciei um assassinato. E parte do cérebro deles ficou na minha camiseta. Isso não passa impune, essa barbárie toda me deixou marcas.
Mas eu acho também impossível mensurar a dor. Você pode atravessar a rua e tropeçar numa pedra e isso pode te deixar uma dor mais profunda do que todas as tragédias que me acompanharam durante a vida. Todo mundo tem seus faros.
O que eu decidi por questão de sobrevivência – tenho forte instinto de sobrevivência –é que não faço o tipo suicida. Acho o suicídio legitimo, as pessoas que se suicidam são verdadeiros heróis, sou muito covarde para me suicidar. E para matar também. No filme que eu fiz sobre meu irmão, tem um momento que eu até editei, mas nunca usei. Pouca gente sabe disso, eu tentei matar os assassinos do meu irmão. Quando tinha 21 anos fui para a Legião Estrangeira. Meus tios do Sul me ensinaram – eu sei usar armas, – mesmo odiando e tendo paúra de violência – eu sei atirar com as duas mãos, sou bidestro, uma incongruência que tenho na minha personalidade.
Quando meu irmão foi assassinado, um amigo meu era traficante na região, fui até ele e ele me deu cocaína. Passei 2 semanas cheirando, com 2 armas na cintura e 2 caixas de balas – atrás dos caras. Descobri onde morava um deles.
JC – Qual?
CB – Eram 3, eram cupinchas de um policial da ROTA que comandava o tráfico da região, ele mandou matar meu irmão. Meu irmão tinha roubado um carro pra ele e queria receber pelo carro. Em vez de pagar, eles o mataram.
Passei uma noite inteira na frente da casa de um desses rapazes, esperando que ele saísse. Eu sei fazer coquetel molotov e outros explosivos caseiros. Eu tinha feito 4, é tática de guerrilha urbana, você joga fogo na casa, as pessoas saem com medo e você as mata. Fiquei a noite inteira cheirando, tava escondido no matagal e não tive coragem de meter fogo na casa. Lá pelas 5 da manhã, sai uma senhora com 3 crianças, indo para creche, assim meio piegas. Naquele momento descobri que não teria coragem de matar nem o cara, nem a mãe dele, nem as crianças ou qualquer coisa que rastejasse por ali. Aí voltei para casa, devolvi as armas pro cara e descobri que eu não era assassino.
JC – Você tinha que idade?
CB – Isso foi em 2001, quando meu irmão morreu, em outubro. Eu tinha 20 e... às vezes esqueço até minha idade. Passei por tanta coisa, que parece que vivi mais do que eu realmente... um pouco fantasiosa essa história...



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