Cristiano Burlan, os dois olhares – 2
Esta segunda entrevista com
Cristiano Burlan foi feita em 9.5.2014. O ator Henrique Zanoni estava
presente. A primeira entrevista foi postada nesse blog em 20.2.2014.
JC – Vamos retomar os dois olhares de que você falou na entrevista anterior?
CB – Os dois olhares? Não me lembro.
JC – Estranho você não se lembrar, eu achei marcante. É o seguinte: um olhar do lado de cá e um olhar do lado de lá do rio.
CB – Lembro.
JC – O que são esses dois olhares?
CB – Mesmo tendo consciência de ter passado por esses dois olhares, o meu olhar agora é sempre o olhar de fora.
JC – Ah bom!
CB
– Por mais que eu tenha nascido no Capão Redondo e tenha consciência,
hoje a perspectiva é diferente. Eu não consigo me colocar na perspectiva
do outro.
JC – Quem é o outro agora?
CB – O que mora do outro lado do rio.
JC – No Capão Redondo?
CB
– Aquele que é explorado pela minha câmera e de outras pessoas, aquele
que é objeto de estudo. Por mais que eu tente, nunca vou conseguir me
colocar nessa situação de novo.
JC – Mas antes você estava nessa situação.
CB – Sim, estava. Agora estou do outro lado, é um caminho sem volta.
Por mais que eu voltasse a morar lá, convivesse com essas pessoas e
tentasse resgatar o meu passado, já passei por coisas que me impediriam.
Não tem como voltar a ser o que você foi.
JC – Quer dizer que você migrou de classe?
CB – Pode-se dizer que sim.
JC – E você se sente culpado?
CB
– Não. Quem gosta de viver no meio da miséria e da violência? Ninguém.
Eu acho que tenho a responsabilidade de sempre que puder dar voz ao
outro. Como na premiação [Prêmio Governador do Estado 2014 para Mataram meu irmão], eu não tinha como não receber o prêmio e não dizer o que falei. É uma aberração o estado que matou meu irmão me entregar um prêmio. Eu poderia me regozijar, puxar o saco do PSDB. Em vez disso, eu falei o que precisava falar.
JC
– Ao falar diante do governador, você acha que deu voz ao outro ou a si
mesmo? Esse discurso contribuiu para o seu sucesso atual.
CB
– É como se meu próprio irmão estivesse falando ali. É completamente
estranho o que vou te falar, mesmo não podendo voltar a ser o que eu era
e voltar a ter essa perspectiva, eu sinto que ela continua dentro de
mim. Agora ela tem filtros, filtros convencionais. Ela tem a vaidade, as
pretensões artísticas. Eu paguei um preço alto por ter realizado esse
filme. É talvez o que me salva um pouco da mediocridade, não que eu não
seja medíocre...
JC – Você se sente um traidor?
CB – Não, não tenho motivo para me sentir um traidor.
JC – Em relação aos seus amigos de antigamente ou à tua família?
CB
– Não diria um traidor, mas acho que poderia fazer mais pelas pessoas.
Me afastei completamente da minha família e do meio em que vivia, até do
meu amigo que aparece no filme [Thiago]. Isso não é consciente, são
questões que me abalam profundamente.
JC – Que questões te abalam?
CB
– Essas questões do meu passado, da violência, de tudo o que vivi. Não
tem um dia que eu acorde sem pensar em todas as pessoas que vi morrer.
JC – Todo dia?
CB – Todo dia. Eu tento não pensar, porque isso me impediria de viver. Mas eu não me sinto um traidor.
JC – Os olhares do lado de cá e do lado de lá já entraram em conflito?
CB – Sim, completamente. Há duas maneiras de ver esses dois olhares, a estética, e também o lado político e social.
JC – Quais são essas maneiras?
CB
– Houve uma depuração do meu olhar, mas ao mesmo tempo eu perdi uma
coisa primitiva que eu tinha quando eu morava na periferia. Tinha
pretensões artísticas, primeiro no teatro e depois no cinema,
eu tinha um olhar mais virgem. Eu saí de lá e fui estudar cinema, eu
tive contato com obras literárias, com pensadores, pessoas que me
influenciaram.
JC – Onde você estudou cinema?
CB – Numa escola de cinema, a AIC, onde leciono hoje. Mas eu fui expulso de lá.
JC – Por quê?
CB – Não tinha dinheiro. Eles queriam que eu trabalhasse lá. Não sou bom para trabalhar, sou preguiçoso.
JC – ...você disse o contrário na outra entrevista, que era trabalhador, obsessivo no trabalho...
CB
– Eu tô falando dessa coisa cotidiana, do dia a dia. Se eu fui
contraditório, isso me torna mais interessante. Se eu tentasse parecer
coerente e repetisse o que já falei... Odeio trabalhar, não é natural.
Eu não acho que cinema seja trabalho, nem teatro. Tenho tesão em fazer
isso, até porque eu não recebo. Meu trabalho é dar aula.
JC – Voltando aos olhares, eles já entraram em conflito?
CB
– Tão sempre em conflito e vou além. [...] Tem o olhar da pessoa comum,
que só observa essas coisas, que vai ao museu e vê um quadro, assiste a
um filme. O olhar dessa pessoa comum interessa mais do que o dos doutos
saberes sobre cinema. Quando comecei a fazer filmes, eu tinha dificuldade de lidar com a crítica. Hoje para mim faz parte do processo, mas a crítica que realmente me interessa, é a do homem comum.
JC – Em geral o homem comum não critica porque não tem onde criticar. Ele vai assistir e ...
CB – Ele não faz critica numa revista especializada.
JC – ...comenta com amigos.
CB – A crítica dele vem de querer ou não assistir a um filme.
JC – Mas não chega até você.
CB
– Não chega ou chega. Se pessoas não quiserem ver meus filmes, é uma
forma de crítica, é um tipo de cinema a que “não quero assistir”...
JC – E tão mal divulgado. [...]
CB
– Quero te fazer uma pergunta... o conteúdo dessa entrevista é o mesmo:
o pobre que virou artista falar sobre essas coisas ou falar sobre
estética. Eu queria falar sobre estética.
JC – Tá bom. Ainda tenho uma pergunta. Por que filmar é um crime?
CB – Tem um pensamento, acho que do Buñuel, que fala que o ato de fazer cinema se aproxima de um ato criminoso.
É como se essa frase fosse minha. Primeiro porque eu não acho natural
colocar uma câmera no rosto de uma pessoa, a câmera representa um órgão
humano. Eu coloco um pau gigante no seu rosto e digo: seja natural e
expressivo.
JC – Com essas 3 máquinas que você colocou em torno de mim, o assassinado sou eu.
CB
– Nós dois! Pode parecer demagogo, mas eu sempre pergunto qual a grande
discussão do cinema brasileiro hoje. Chego à conclusão que, mais
importante que a estética, é a questão política do ato de fazer filmes, o dinheiro. Como conseguir dinheiro e, depois da obra feita, fazer o dinheiro voltar?
JC – Onde está o crime?
CB
– Vou concluir meu pensamento. Eu viajei pelo país fazendo
documentários etnográficos, conheço boa parte do Brasil. Percebi que
ainda é um país miserável, quase 80% da população vive num estado de
pobreza profunda. Eu fico imaginando essas pessoas que têm acesso ao
dinheiro para produzir cinema, que responsabilidade é essa? Quase um ato
criminoso. Pegar dinheiro de renúncia fiscal e gastar para fazer
filme... Não tô dizendo que essas pessoas usem o dinheiro para outro fim
[...] estou falando por baixo, fácil entrar num tiroteio quando você
não tem acesso a esse dinheiro. Fácil pra mim falar mal das pessoas que
usam dinheiro público para fazer filme.
JC – Você não tem acesso ou não quis ter acesso?
CB
– Agora tenho. Há anos eu tento editais e nunca sou contemplado.
Mandamos projetos da Bela Filmes para todos os lugares, até projeto de
filmar velório. É sempre “não” [...] eu não tô reclamando. Quando um
projeto nosso não é contemplado é que outro foi. Quem escolheu entendeu
que o escolhido tem algo mais interessante a dizer do que eu e os meus
parceiros.
JC – Você acaba de filmar Hamlet: foi um ato criminoso?
CB
– Eu acredito que Shakespeare é atual por falar de questões inerentes
ao ser humano em qualquer lugar da terra. Ele fala de amor, ódio e
separação. Shakespeare é cinematográfico por usar elipses, o personagem
está na floresta negra, vira para o lado e está num castelo, vira para a
esquerda está num navio. Especificamente acho Hamlet rock and roll, um
rebelde por essência e ao mesmo um cara mimado, ele é egoísta, ególatra,
freudiano. Me sinto próximo da tragédia, da violência de Shakespeare.
Principalmente Hamlet,
eu trago um pouco para mim, para minha vida. Próximo também do momento
que vivemos no país, em São Paulo, alguma coisa está fora dos eixos,
tem uma névoa sobre a cidade, essa tensão pré-Copa, uma coisa ruim ou
muito forte vai acontecer. Eu sou a favor das mudanças, o conflito te
faz mudar.
JC – Por que você traz Hamlet para tua vida?
CB – Para minha vida ou para o filme?
JC – Você diz que é próximo de sua vida.
CB
– Hamlet é próximo da minha personalidade. Ele questiona o status quo,
ele acha que tem alguma coisa errada e realmente tem. Mas ele não vai
para o embate. Fica a peça inteira sem se confrontar, não por decisão
dele. É que você faz parte de uma engrenagem. É como se ele não tivesse
força para ser senhor do seu destino. É como eu me sinto. Eu não sei
viver, improviso.
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