Filme do Dia: La Rabbia (1963), Pier Paolo Pasolini & Giovanni Guareschi
La Rabbia (Itália, 1963). Direção: Pier
Paolo Pasolini (segmento I) & Giovanni Guareschi (segmento II). Rot.
Original: Pier Pasolini (segmento I) & Giovanni Guareschi (segmento II).
Montagem: Pier Paolo Pasolini & Nino Baragli.
Nesse curioso documentário ou filme-ensaio,
a partir da seguinte premissa propõe-se duas visões sobre o mundo, uma mais
progressista, representada pelo primeiro segmento, dirigido e escrito por
Pasolini, outra mais conservadora, dirigida e escrita por Guareschi. No
primeiro segmento, parte-se de imagens de arquivo do que representava boa parte
dos eventos políticos e sociais de então, com destaque especial para a
independência dos países africanos e Cuba, mas também do uso de Albinoni na
trilha musical, stills e até mesmo
pinturas clássicas na construção de uma visão eminentemente pessimista em que –
a certo momento e na melhor tradução de sua concepção do mundo moderno –
Pasolini exclama que o fim das culturas tradicionais e a vitória completa do
mundo burguês acabará levando ao mundo uma derrocada suicida pela higienização
excessiva, representada simbolicamente por imagens de explosões atômicas e da
morte de Marilyn Monroe. Pasolini faz extenso e engenhoso uso de uma variada
iconografia da época, passeando de imagens de Sukarno a De Gaulle, dos
astronautas soviéticos a morte e ascensão de um novo papa, João XXIII, da
coroação da Rainha Elizabeth ao artificialismo das prima-donas cinematográficas
como Ava Gardner na Itália ou Sophia Loren em meio as enguias que compõem o
cenário para seu próximo filme. Porém, sua narração off, permeada por recitações de reflexões escritas em formato
lírico pelo próprio realizador, soam por vezes cansativas. O segundo segmento,
bem mais pobre e esquemático, mais se aproxima de um banal anti-libelo
comunista tais como os vigentes na imprensa ocidental contemporânea. Ao
contrário de Pasolini, que traça uma poética em que não fica ausente uma
criticidade seja a repressão soviética a Hungria ou aos excessos após a vitória
de Fidel em Cuba, aqui se clama sem qualquer problematização pela liberdade. A
mesma que se encontra ausente do Leste Europeu, algo que é corroborado de modo
apelativo por imagens de refugiados que despencam de prédios buscando se exilar
fora do que o narrador denomina, passado o Muro de Berlim, de “Império
Soviético”. Existe também um ainda mais datado apelo à moralidade cristã,
condenando o excesso de sexo celebrado pelo cinema italiano, através de imagens
de suas divas (como Anita Ekberg) ou a homossexualidade, representado por um
casal de travestis francesas que acabam sendo deportadas da Itália ou (suprema
desgraça!) pelo casamento entre dois homens (um deles vestido de homem, outro
como mulher) com as bênçãos da igreja.
Os funerais de Jorge V, rei da Inglaterra, acabam servindo como ápice da
tradução, em termos visuais, do lamento nostálgico do filme pelos áureos tempos
do imperialismo europeu na África. As conseqüências do afastamento da Europa do
continente são representadas, de modo quase fascista, na “humilhação” do
encontro entre a rainha da Inglaterra e “um negro”, no fim do convívio
“pacífico” entre brancos e negros, com seqüelas terríveis para os primeiros, em
um continente agora vulnerável aos produtos americanos e a ganância chinesa.
Porém, em nenhum momento o eurocentrismo vai tão longe quando procura
ridicularizar o processo de independência africana, apresentando o “elevado”
grau de democracia atingido pelo povo do Congo e segue-se imagens de
comemorações e festejos tribais em um estádio, numa seqüência que, a seu modo,
pretende ridicularizar qualquer possibilidade de autonomia política pelos
negros com o mesmo sarcasmo da célebre representação de um congresso dominado
apenas por negros no Nascimento de uma Nação (1915),
de Griffith. A certos momentos, a fobia comunista chega a ser tão patética e
pouco sofisticada quanto a contemporânea propaganda anti-comunista produzida no
Brasil pelo Ipês como quando apresenta uma cirurgia realizada por médicos soviéticos em que é
implantada uma segunda cabeça a um cachorro ou na prédica final que afirma que
ainda se vale viver a vida, apesar de Kruschev e Mao. Há um evidente temor e medo, palavra aliás
recorrente na narração do episódio, pelo novo. Porém, se aqui poderia ser
traçado uma relação com o temor de Pasolini diante dos valores burgueses que
cada vez mais regem o mundo, trata-se aqui de um temor mais tipicamente reacionário
diante do “desconhecido” e de um mundo com valores bem delimitados,
representado seja pela crítica a corrida espacial então nascente ou do transe
coletivo e violento que o rock induz na juventude. Opus Film. 99 minutos.
Comentários
Postar um comentário