Filme do Dia: O Homem Cordial (2019), Iberê Carvalho

 


O Homem Cordial (Brasil, 2019). Direção Iberê Carvalho. Rot. Original Iberê Carvalho & Pablo Stoll. Fotografia Pablo Baião. Música Sascha Kratzer. Montagem Nina Galanternick. Dir. de arte Maíra Carvalho. Figurinos Eduardo Barón & Vinícius Couto. Maquiagem Vanessa Barone Pina. Com Paulo Miklos, Thaíde, Dandara de Morais, Pedro Lima, Luiz Felipe Lucas, Felipe Kenji, Thales Cabral, Tamyres O’Hanna, Murilo Grossi, Theo Werneck,  Geraldo Rodrigues, Mauro Schames.

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Aurélio (Miklos) faz parte de uma banda de rock  e sofre uma reação em massa da plateia, ao ponto do show ter que ser interrompido. O motivo é ele ter defendido um garoto negro de ter sido acusado de roubo, gerando uma confusão de rua, e o policial (Lucas) que perseguiu o garoto, que fugiu assustado em meio a confusão, ter sido morto durante a perseguição. Quando reagem a saída do show a um grupo agressivo, um dos colegas de banda sofre um enfarto. Aurélio e a produtora vão na casa da mãe do rapaz  busca-la para o hospital. Aurélio não volta com elas e somente quando o carro parte é que descobre não se encontrar com seu celular. Sem conseguir retornar para casa, ele se depara com um grupo pequeno protestando diante de seu edifício. Agride alguns dos presentes e se dirige de forma ríspida a uma jornalista negra, Helena (Morais) que lhe pedira uma entrevista. Na pequena redação onde Helena trabalha, ele fica sabendo que o garoto Mateus (Kenji), encontra-se desaparecido desde a confusão. Ao saber que o garoto mora em um bairro pobre, vai até o bar de um ex-integrante da banda, Béstia (Thaíde). Junto a eles se encontra um colega de redação de Helena, Rudah (Cabral) e também se une ao grupo a irmã de Mateus, Marina (O’Hanna) encontrada na casa do garoto, onde a mãe esbraveja com Aurélio por ter deixado o filho correr. Eles identificam numa boate o autor do vídeo (Rodrigues) que viralizou e em meio a troca de insultos, e de agressor, por parte de Marina em relação ao videomaker que persegue com seu celular o músico faz algum tempo. O grupo se torna vítima de sevícias de um policial sádico (Grossi), inconformado com a morte do colega.

A ausência de sutileza provavelmente é o maior crime deste thriller um tanto asfixiante, em seu mergulho numa teia que toca em vários pontos de enfrentamento da sociedade brasileira à época de sua produção – o racismo estrutural herdado de uma desigualdade social com raízes étnicas, a cultura do cancelamento – como motivo e tempero para sua trama. Mesmo longe de desinteressante, inclusive trabalhando em flasbhback ao final a situação resultante no imbróglio assistido até as sevícias policiais e sem resolver todos os nós, reproduzindo a lógica exposta por Helena, de todos apenas terem se preocupado  com Aurélio e o policial (no caso do filme, apenas o primeiro, já que do garoto não temos notícia, assim como os outros envolvidos na fatídica noite). A busca de provocação respingaria na herança de um Sergio Bianchi caso se buscasse um retrato totalizante. Não é o caso e se tenta complexificar algumas das matrizes críticas; ao mesmo tempo que as redes sociais geram toda a situação de tensão entre os envolvidos e, ao que tudo indica, colateralmente, a morte do policial, é também quem os salva do quadro de torturas, pois as cenas são transmitidas ao vivo por Rudah, mesmo ferido no chão. Mais que Bianchi, o filme deve a Beto Brant a mescla entre tensão e comentário social, e a presença no elenco de Miklos é quase uma confissão desta influência. O papel mais marcante do ator foi em O Invasor, filme ao qual este muito deve, acrescentando o elemento racial, mas perdendo em termos de construção da tensão, criação atmosférica (há muito pouco silêncio no labirinto de violência e tensão) e previsibilidade. Fica-se com a impressão, e depois se constata, de um filme cuja implicação inicial foi a de um fato real, no caso o linchamento de um garoto negro por cidadãos muito sedentos por um bode expiatório para desafogar suas tensões. Porém daí a se comparar tal horizonte de pensamento com um outro geracional que pregava figurinhas de Che Guevara na guitarra seria demasiada autocomplacência, embora haja potencialidade para tal tipo de elaboração, no cenário brasileiro, mais que no filme. Rende mais a explosão genuína de raiva de uma mãe ou o comentário de Béstia a trazerem realidades desconhecidas ou não vivenciadas existencialmente do liberal branco, e de sua cópia rejuvenescida na pessoa do jornalista. E retorna o clichê de um liberal de esquerda branco, sua versão mais jovem e três negros ameaçados por uma voz que desconhece regras de contenção emocional diante do inesperado, tal qual o grupo que provoca um linchamento moral, mas sem descurar do físico (talvez se tornasse uma reprodução do caso que gerou a ideia para o filme, não fosse nosso herói). Quase uma alegoria dos tempos de Bolsonaro, mas pouco verossímil em se tratando de uma celebridade de grande repercussão midiática. Coloca-se em um mesmo barco, passageiros de embarcações de porte diverso diante da tempestade, por mais que casos posteriores como o assassinato de Don Phillips e Bruno Pereira projetassem/projetem uma maior possibilidade de até embarcações, em tese mais seguras e protegidas, virem à deriva com o avanço de uma autocracia. Lançado apenas quatro anos após suas filmagens, devido a pandemia de covid-19. |Acere/Momento Filmes/Pavirada Filmes/Quartinho Direções Artísticas para Media Luna New Films. 83 minutos.

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