Filme do Dia: O Fio da Navalha (1946), Edmund Goulding
O Fio da Navalha (The Razor’s Edge, EUA, 1946). Direção: Edmund Goulding. Rot. Adaptado: Lamar Trotti, a partir do romance de W. Somerset Maugham. Fotografia: Arthur C. Miller. Música: Alfred Newman. Montagem: J. Watson Webb Jr. Dir. de arte: Richard Day & Nathan Juran. Cenografia: Thomas Little. Figurinos: Charles Le Maire. Com: Tyrone Power, Gene Tierney, John Payne, Anne Baxter, Clifton Webb, Herbert Marshall, Lucile Watson, Frank Latimore, Elsa Lanchester, Fritz Kortner.
Isabel
Bradley (Tierney) é completamente apaixonada por seu noivo, Larry (Power).
Esse, no entanto, não se encontra muito certo do que quer na vida, após
retornar de uma traumática experiência na Primeira Guerra Mundial e parte para
a França e, posteriormente, Índia. A contragosto, a socialite Isabel se casa
com alguém de uma posição mais afinada com a sua, Gray (Payne). Larry retorna
dez anos após. Isabel o quer para si, mas esse prefere se casar com uma antiga
amiga deles, Sophie (Baxter), nunca completamente recuperada do alcoolismo que
naufragou após a morte do marido e a filha em um trágico acidente. Isabel atiça
o retorno de Sophie ao alcoolismo. Essa, vai fundo em seu impulso
auto-destrutivo e vem a morrer assassinada numa área portuária. Isabel pensa
que agora finalmente terá Larry para si. Mas, não é o que ocorre.
Há muitas
pátinas do que uma produção hollywoodiana de sua época representaria em cima de
qualquer tema, episódio histórico ou adaptação (como é o caso dessa) que
promovem, geralmente, uma suavização do que haveria de mais indigesto. E soando
por vezes tão verossímil quanto os Himalaias pintados no grosseiro cenário a
representar a Índia em profundidade – profundidade de representação em
perspectiva focal, não de abordagem, é claro. Ou tão incômodas feito a melodia
clamante de sua trilha sonora, sempre disposta a se inserir por qualquer cena
tida como de inflexão de demasiado pouco apelo dramático. E, há o tratamento
que se aguarda será reservado ao incréu, trapaceiramente identificando sua
inquietação perante a vida e aos compromissos de alguém típico de sua idade e
classe social somente a ausência de fé. Há o expediente, hoje banal, à época
nem tanto, de inserir o autor do livro que se adapta em sua história. Mas, ao
mesmo tempo, tem-se uma figura tão impertinentemente ácida quanto a vivida por
Clifton Webb. Na verdade, Webb incorporando a sua habitual figura sarcástica,
pedante, de traços homossexuais (tal como o seria igualmente em Laura,
em que também possui uma relação intensa com a personagem vivida pela mesma
Tierney, em um filme produzido pelo mesmo estúdio; resumindo, o cerne de sua
própria persona cinematográfica). E como não se deliciar com tiradas suas como
a que muito diretamente insinua que na Europa, ao contrário dos simplórios
laivos românticos para se formar um casal, casar-se-ia por convenção e se
resolveria o restante por fora do casamento. Ou ainda o objeto de amor, tão
pouco identificado com o mundo burguês ao qual Larry pertence quanto, décadas depois,Jack Nicholson em Cada Um Vive Como Quer. E, como naquele, fugindo para
terras distantes – primeiro França, depois Índia – e empregos insalubres e
identificados com a arraia miúda (lá na indústria petrolífera, aqui na
carvoeira). Também a seu favor está a forma como usa o tempo, saindo da
aparente insipidez inicial e nos envolvendo com os personagens (que não
procuram um autor, mas convivem com ele) e na sua economia, que evita todo e
qualquer excesso como os praticados nas produções contemporâneas de Selznick. E
a presença luminosa de Tyrone Power. De uma intensidade fulgurante, que
consegue driblar muitas armadilhas da atuação da época, e sendo bom até mesmo
quando não as dribla. Seu tempo, um tanto pouco não usual para filmes que não
fossem de grande apelo de ação, é repleto de falas que muitas vezes mal
conseguem ser processadas antes que emerjam as próximas. Note-se que há um
orientalismo associado ao decadentismo sexual de Sophie, que parte para um
local intensamente frequentado por marroquinos de Paris, quando o álcool lhe
faz libertar das barreiras que uma tentativa de vida convencional acenavam em
seu casamento com Larry. E se tem uma interpretação dinâmica de Baxter em sua
pele, da jovial garota da juventude a mulher que embaraça Isabel na mesa de um
bar de apelo menos sofisticado – capricho muito ocasional de uma sofisticada
Isabel, que possui como única motivação a cena em questão – em sua fúria pelo
esquecimento de sua dor, fazendo com que outras chagas assomem todos os dias, e
afirmando que a virilidade de seu amante de então a faz desculpar pela
brutalidade de modos com que a trata. Muito bravamente, o filme não efetua
nenhuma mudança estrutural no caráter de qualquer dos quatro personagens
principais. Isabel continua obcecada por ele e pelos prazeres que a vida de
elite lhe proporciona. O tio Elliott continua a ser a mesma alma mundana e
fútil até o último minuto de sua vida. Sophie não consegue se “redimir” do
trauma sofrido e se reinventar – sua reserva de peso emocional parece se
encontrar a espreita, esperando o primeiro bote; no que somente se poderia por
na conta de Isabel essa reaproximação com um impulso de má fé que o melodrama
permitiria. E, por fim, Larry, exemplarmente reconhece que conseguiu apenas
parcialmente se encontrar, já que nem as minas de carvão, nem o guru indiano
(que parece ter um cuidado demasiado especial para com ele) conseguiram
domesticar seu coração selvagem, novamente assoberbado com a tragédia de
Sophie. Os anos 80 foram exímios recicladores do que se produziu quatro ou
cinco décadas antes, e o romance de Maughan não ficou incólume, recebendo uma
versão, como todas ou quase todas, pior, de mesmo título e dirigida por John
Byrum. A feliz escolha de Marshall, que surge em vários momentos, como pretexto
para ser o ponto de vista de quem narraria a história, e cuja voz surge muito
modicamente em poucos, talvez um único após o início, não apenas consegue uma
boa interpretação, ressaltando-se seus olhos cansados e certa passividade de um narrador que não
interfere em sua narrativa, como também se assemelha fisicamente com o
escritor, com suas bochechas levemente intumescidas de buldogue. Twentieth
Century-Fox. 145 minutos.
Comentários
Postar um comentário