Filme do Dia: Praça Paris (2017), Lúcia Murat

 


Praça Paris (Brasil/Portugal/Argentina, 2017). Direção: Lúcia Murat. Rot. Original: Lúcia Murat & Raphael Montes. Fotografia: Guillermo Nieto. Música: André Abujamra & Marcio Nigro. Montagem: Mair Tavares. Dir. de arte: Dina Salem Levy.  Figurinos: Ana Carolina Lopes. Com: Grace Passô, Joana de Verona, Marco Antônio Caponi, Alex Brasil, Babu Santana, Thaís Nascimento, Digão Ribeiro, Daniel Braga.

A jovem terapeuta portuguesa Camila (de Verona) se vê cada vez mais enredada nos dramas de sua cliente, Glória (Passô), que envolvem um perigoso traficante da comunidade em que Glória mora no Rio, irmão dela, Jonas (Brasil), assim como seu namorado, tido como desafeto de Jonas, Samuel (Ribeiro), ambos sabedores da existência dela. A tensão para Camila se torna crescente quando Glória deixa de ser uma mera paciente e além de ocupar boa parte de seus pensamentos, passa também a procura-la em sua residência, após ela, inclusive, ter acabado o namoro com outro português, Martim (Caponi).

Desenvolvem-se expectativas distintas em relção às mulheres de acordo com seu universo social. De Glória, quando menos se espera, os policiais a levam à delegacia e ela sofre violência. Já de Camila cria-se um senso de eminência trágica, de que algo lhe poderá ocorrer, dada sua “contaminação” excessiva pelo caso de Glória, que sua orientadora já alertara a respeito. São enquadramentos que, sob certo sentido, reproduzem as lógicas da sociedade violentamente desigual do Brasil. E tal contaminação ocorre mais, inicialmente,  a nível da invasão da subjetividade crescente de Camila pela realidade de Glória, não propriamente por ameaças reais, nunca deixando de acontecer a relação sujeito-objeto nas práticas da terapia que uma se submete à outra, apesar das ameaças de revolta ou inversão da relação. E, conscientemente ou não, lidam com o processo de identificação com as tensões vividas por Camila, muito mais próximas do perfil social que primordialmente assistirá essa produção.  Murat consegue se sair relativamente bem em sua construção atmosférica, a mesma que faz uso dos conflitos sociais brasileiros como base para uma situação que evoca terror ou suspense, de várias produções de alguns anos antes (O Som ao Redor, Trabalhar Cansa dentre os mais evidentes). E não apenas segura o ritmo da tensão como o vai tornando crescente rumo ao final. Porém, há algo de mais óbvio em tudo isso. Sobretudo nos dramas sucessivos de Glória (abuso pelo pai, assassinato do pai, prisão do irmão, morte de um policial e uma garota que lhe insultaram pelo irmão). E na sua aparente tentativa de seguir a vida amparando-se no triângulo irmão-pastor-terapeuta. E, ao mesmo tempo, algo de uma alegoria menos evidente, aqui voltada para o retorno do recalcado do colonialismo. E o terror emerge também de um processo terapêutico que não tem condição de ser apreciado da mesma maneira pelas duas partes, justamente por conta do abismo cognitivo-existencial-social de ambas. O que era um mero caso clínico a protagonizar seu mestrado para uma, é uma das principais fontes de sustentação emocional para a outra, havendo aí igualmente uma crítica visceral ao ambiente teórico-acadêmico.  Murat já havia abordado a questão racial no contexto brasileiro em Quase Dois Irmãos (2004). CEPA Audiovisual/Fado Filmes/Rede Telecine/Taiga Filmes para Imovision. 110 minutos.

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