Filme do Dia: Quase Dois Irmãos (2004), Lúcia Murat

 


Quase Dois Irmãos (Brasil/Chile/França, 2004). Direção: Lúcia Murat. Rot.Original: Lúcia Murat & Paulo Lins sob argumento de Murat. Fotografia: Jacob Solitrenick. Música: Naná Vasconcelos. Montagem: Mair Tavares. Dir. de arte: Luiz Henrique Pinto. Figurinos: Inês Salgado. Com: Caco Ciocler, Flávio Bauraqui, Werner Schünemann, Antonio Pompêo, Maria Flor, Brunno Abrahão, Cristina Ache, Lúcia Alves, Pablo Ricardo Belo, Luiz Melodia, Tonico Pereira, Marieta Severo.

Miguel (Schünemann), ex-preso político (Ciocler) tenta se aproximar de Jorginho (Pompêo), amigo de infância, para instituir um projeto social na omunidade carente do morro, hoje controlado em grande parte pelo próprio Jorginho da cadeia. Miguel é amigo de infância de Jorginho, devido a amizade entre o pai de Miguel (Eiras), egresso da alta sociedade, com o pai de Jorginho (Melodia), através das rodas de samba. Ambos foram igualmente companheiros de prisão na Ilha Grande até o momento em que a tensão crescente entre presos comuns e políticos provoca uma ruptura entre ambos. Miguel, hoje deputado, se vê as voltas com uma filha envolvida com traficantes do morro.

Ainda que ao início ameace o mesmo tom esquemático e até panfletário com que Murat havia se debruçado sobre a história recente do Brasil (Doces Poderes, Que Bom Te Ver Viva), o filme consegue driblar tais limitações e se afimar de longe como a mais madura e bem realizada produção da realizadora. Fluente e distante da precariedade tanto de produção quanto de interpretação do elenco característica de seus outros dois títulos, o filme consegue ser, em seus melhores momentos, um portentoso painel que entremeia a realidade de dois universos que mesmo se tocando em vários momentos, são bastante distintos,  como Jorginho deixa bastante claro ao romper sua amizade com Miguel. Diferenças que estão patentes nos três momentos da narrativa (final dos anos 50, idos de 70 e contemporânea à produção do mesmo). Unindo a sede de interpretação do Brasil, igualmente despida de sentimentalidade, porém igualmete de seu cinismo,  de um realizador como Bianchi (Cronicamente Inviável) a uma apropriação de uma narrativa mais espetacularizada, no rastro do sucesso mundial de Cidade de Deus, o filme possui ainda o mérito de fugir das facilidades auto-condescendentes ou simplificadoras com que os militantes de esquerda tem sido habitualmente retratados. Nesse sentido, nada mais distante do emocionalismo manipulativo e mistificador da união entre classes selada através da religião em filmes como Batismo de Sangue do que a bem construída representação de dois universos com valores morais e compreensão do mundo bastante demarcados, mesmo que os dramas de Jorginho e do núcleo dramático da favela sejam secundários e praticamente dependentes de seu envolvimento com os dramas dos personagens de classe média. O resultado final é beneficiado ainda pelo elaborado trabalho de montagem, acertadamente mais discreto que o do filme de Meirelles, e pela bela canção tema da autoria de Melodia que ajudam na sua construção circular que reforça a passagem de Fernando Pessoa sobre o fato de vivermos duas vidas, a que sonhamos e a que vivemos que dá mote ao filme. Taiga Filmes/Ceneca Producciones/TS Productions. 102 minutos.

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