Filme do Dia: O Espírito de 45 (2013), Ken Loach
O Espírito de 45’ (The Sprit of 45’,
Reino Unido, 2013). Direção e Rot. Original: Ken Loach. Fotografia: Stephen
Standen. Música: George Fenton. Montagem: Jonatham Harris.
A
partir de uma estrutura bastante simples e sem rebuscamentos estéticos
desnecessários e contrários ao propósito do filme, Loach se mune de generosas
imagens de arquivo e depoimentos de simpatizantes do partido trabalhista já em
idade extremamente avançada, que vivenciaram o cotidiano da época e, em menor
monta – numa opção feliz de fazer uso das palavras desses de forma mais
comedida– de especialistas acadêmicos para traçar um vigoroso painel político e
social do período e sua potencial projeção para o momento em que foi produzido.
Observa-se, não sem algum grau de surpresa, as condições de extrema
miserabilidade das classes populares ganhando contorno e voz apropriada com um senhor, Sam Watts, que afirma logo ao início
“ter nascido a 87 anos atrás nos cortiços de Liverpool”. Ele relembra dormirem
cinco numa mesma cama e dos três irmãos mortos em meio a panaceia de infestação de insetos que
se acumulavam nos prédios onde viviam, acrescentando ao mesmo tempo que se
tratava do período em que o Reino Unido vivenciava o auge de seus dias de
Império, assim como Churchill pregava que qualquer maior assistência social
proveniente do Estado os levaria a mesma situação totalitária da União
Soviética. Iniciando com imagens de Humphrey Jennings, o filme faz questão de
expressar o outro lado da história oficial, do tipo exportação, como o momento
em que Churchill, constrangido, é intensamente vaiado por membros da classe
trabalhadora e uma senhora, Dot Gibson evoca
o susto quando o homem que admirava irrestritamente nas locuções de rádio
quando tinha dez anos venha a ser
criticado por seu pai ao ter reprimido violentamente uma greve. Acompanha-se o
lançamento das campanhas de Churchill, pelos conservadores, e Clement Atlee,
pelos progressistas, e a vitória do segundo é lembrada em depoimentos
emocionantes, como o do mineiro Ray Davies que viu os rudes mineiros que
aceitavam todo tipo de imposição dos patrões no trabalho, chorando e afirmando
que agora teriam controle sobre suas próprias vidas. Davies, um dos que faz
mais questão de apresentar sua fidelidade à esquerda inclusive visualmente, com
uma boina vermelha, narra o momento
exato em que passou a ser ateu, após ter a mãe morta por descuido médico e ter
rezado fervorosamente para tê-la de volta, tomando consciência de que somente
quem poderia mudar a situação deles, eram eles próprios. Filmando em
preto&branco os depoimentos, Loach evita o contraste e cria uma
continuidade entre suas imagens de arquivo e o período de seu filme, continuidade
que, implicitamente ou não (como é o caso do estudioso que aponta o constante
retorno do reprimido dos surtos de insatisfação popular ao longo da história),
a depender do trecho do filme, projeta-se para o momento contemporâneo a sua
realização. Dentre os males menor, talvez, se assim pode ser considerado, o seu
excessivo didatismo de reproduzir na imagem alguns dos textos escritos que são
narrados igualmente em áudio. Quando destaca o projeto de nacionalizações, se
do Sistema Nacional de Saúde e do
projeto habitacional que trouxe moradias de qualidade para os trabalhadores não
há comentários que não sejam elogiosos, observando que antes toda a saúde era
estritamente associada ao paciente ter ou não dinheiro ou – como no caso de um
dos depoentes – dos médicos irem visitar várias vezes a sua mãe, mesmo sabendo
que ela já se encontrava condenada, apenas para ganhar algo, e o do sistema
ferroviário idem, a nacionalização das minas de carvão não são poupadas
críticas, mesmo se tendo melhorado a situação. Tais críticas se encontram
vinculadas às decisões políticas que por vezes privilegiavam pessoas
completamente non gratas aos trabalhadores, sem falar de sua completa exclusão
do processo decisório numa relação hierárquica ainda completamente verticalizada.
No terço final do filme, que retoma o seu retrospecto histórico partindo das
políticas neo-liberais de Thatcher, observa-se o gradual desmantelamento do
espírito de 45 retratado nos dois terços iniciais. E os esboços de se pensar
algo articulado que se contraponha a isso não vão além de uma bela retórica,
como a de Ray Davies que retoma o que havia sido dito aos mineiros, de terem
controle sobre suas próprias vidas, ser projetado para o futuro, em uma
projeção não muito distante de certas passagens utópicas de Marx. Ou ainda quando
Dot Gibson afirma que o espírito de 45
pode ser reativado junto aos jovens, deixando de levar em conta todo o abismo
em termos históricos e, sobretudo, existenciais que separa os jovens de sua
época dos de hoje. E, infelizmente, nem o próprio filme de Loach poderá servir com esse intuito, se é essa foi sua
nobre intenção, dada a restrita circulação que cabe a um documentário e sua
evidente falta de apelo, em termos de formato audiovisual, para um jovem médio
de sua época. Dito isso, não se pode tirar o mérito da empreitada que destaca
figuras como a do criador do Sistema Nacional de Saúde, Aneurin Bevan, mas é
sobretudo o carisma de vários depoentes como a enfermeira Eileen Thompson,
Davies, Sam Watts ou Dot, dentre os mais recorrentes, que os torna a própria
nervura do filme; tire-se eles e o filme não teria nem de longe o mesmo apelo
que, mal comparando com as ficções do realizador, traz uma moldura pessoal para
os dramas vivenciados pela sociedade. Que não se espere, no entanto, a escuta de vozes dissonantes as que aqui são
legitimadas. Fly Film Co./Sixteen Films/BFI Film Fund/Channel. 94 minutos.
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