Filme do Dia: Num Ano de Treze Luas (1978), Rainer Werner Fassbinder
Num
Ano de Treze Luas (In Einem Jahr mit 13
Monden, Alemanha, 1978). Direção e Rot. Original: Rainer Werner Fassbinder.
Fotografia: Rainer Werner Fassbinder. Música: Peer Raben. Montagem: Rainer Werner Fassbinder &
Juliane Lorenz. Dir. de arte: Franz Vacek. Cenografia: Rainer Werner
Fassbinder. Com: Volker Spengler, Ingrid Caven, Gottfried John, Elizabeth
Trissenaar, Eva Mattes, Günter Kaufman, Lilo Pempeit, Isolde Barth, Karl
Scheydt, Walter Bockmayer.
Erwin (Spengler), jovem sensível e apaixonado pelo colega de
açougue Anton Saitz (John), viaja para para Casablanca onde efetiva uma
operação de mudança de sexo e se transforma em Elvira para agradar o mesmo, que
afirmara que só iria amá-lo se ele fosse uma garota. Porém, sua vida fica ainda
mais destroçada, já que mesmo separado da esposa Irene (Trissenaar) e da filha
Marie-Ann (Mattes), não consegue se realizar afetivamente. Seu companheiro,
Christoph (Scheydt) o abandona no mesmo dia em que é vítima de espancamento por
parte de jovens que paga para ter sexo. Seu único refúgio é a prostituta de bom
coração Zora (Caven) que lhe leva até uma freira que cuidara dele na infância,
Gudrun (Pempeit), que conta todo o seu passado esquecido. Elvira vai ao
encontro de Saitz, hoje multimilionário chefe de negócios escusos e esse
concorda em ir até sua casa, mas fica nos braços de Zora. Completamente
desnorteado, Elvira tenta voltar a ser Erwin, cortando o cabelo e se trajando
como homem, porém é recusando tanto pela ex-esposa quanto pelo seu antigo
amante, Christoph, que agora vive com uma mulher. Retorna a sua residência,
onde se suicida diante do casal Saitz e Zora, que simplesmente o ignoram. Aos
poucos, chegam todas as figuras que representaram algo na sua vida: Christoph,
sua filha, Irene e Irmã Gudrun.
O próprio cineasta o considerava um dos filmes mais pessoais
de sua carreira. Embora profundamente melancólico, o filme não deixa de possuir
uma subterrânea corrente de humor (“se não fosse a melancolia, o mundo seria
mais triste” afirma um suicida antes de praticar o ato), provocada por momentos
que rompem completamente com as expectativas do melodrama. Nesse sentido,
encontram-se tanto as intervenções do motorista (vivido por Kaufman, que irá
sempre encarnar papeis do gênero em toda a filmografia do cineasta) tentando
impedir que as pessoas tenham acesso ao quarto onde se encontra o corpo do
protagonista – o elemento cômico no momento mais trágico – quanto a seqüência
completamente estapafúrdia em que Seitz reencontra Erwin/Elvira e se delicia em
imitar – sendo seguido pelos outros, inclusive Elvira - os trejeitos afeminados
de um personagem de Jerry Lewis num número musical de um filme que assiste na
televisão. Ou ainda, quando após motivada pelo impulso humanista de tentar
salvar o suicida de seu desígnio e escuta uma série de convicções que abalam
ainda mais sua frágil personalidade e parecem prognosticar seu próprio fim,
Elvira acaba interropendo sua fala e o incentivando de vez a pôr um fim em sua
vida. Narrado de forma descontínua – somente se toma conhecimento dos reais
motivos para a operação em Casablanca já próximo do final – o filme se inicia com legendas que atestam
que 1978 é um dos anos de 13 luas, motivador de grandes tristezas para um
determinada categoria de pessoa na qual, obviamente, se insere o protagonista.
Como em muitos outros filmes do cineasta, aqui visivelmente se apresenta o
interesse do mesmo por narrativas que os personagens apresentam dentro do
enredo, mesmo que sem nenhum interesse diegético. Nesse sentido, se encontra a
história infantil que Zora conta para Elvira ou que Elvira conta para seus
ex-amantes ou ainda, e mais notoriamente anti-diegética, a do suicida no prédio
de Seitz faz a respeito da defesa do suicídio como valorização da própria vida.
Numa dessas narrativas – no caso, a do homem que afirma ter trabalhado para
Seitz – Fassbinder, com seu habital senso de provocação, faz menção à continuidade
do fascismo dos tempos de guerra na vida cotidiana da forma mais perversa:
Seitz, judeu que teria sido prisioneiro num campo de concentração, soubera
aplicar as táticas que aprendera no campo em seus negócios. Paradoxalmente,
mesmo sendo um de seus filmes mais pessoais, já que dramatiza uma relação
vivenciada pelo próprio cineasta com um amante que acabou se suicidando, é um
dos que mais dialoga com a tradição do cinema europeu. Seja quando incorpora o tema musical de Mahler e
evocações de “olhares clandestinos” em locais desertos de Morte em Veneza (1971), de Visconti – mesmo que aqui para ilustrar
igualmente uma sequência que acaba por ser o oposto do olhar platônico, no qual
Elvira é vítima de agressão, já no prólogo do filme. Ou ainda quando se apodera
da personagem de Cabíria para construir sua Zora e, para não deixar qualquer
dúvida quanto à matriz, incorpora a trilha de Nino Rota para Noites de Cabíria (1957), sempre que o
personagem entra em cena. Da mesma forma o teatro dos personagens que chegam
subitamente para chorar o morto evoca, no seu absoluto desprezo pelo realismo,
tanto 8 e ½ (1963), quanto filmes que
ainda seriam realizados por Fellini, tais como Cidade das Mulheres (1980). Por outro lado, não há como não traçar
algum paralelo com a obra de Almodóvar, com seus enredos permeados pela
escatalogia e transexualismo, e até mesmo numa certa ambigüidade que igualmente
trafega entre o humor e o melodrama – em filmes como Fale com Ela (2002) e Tudo
Sobre Minha Mãe (1999). Também não se pode deixar de perceber um certo
clima kafkaniano na seqüência do edifício de Anton Saitz, influência que o
cineasta faz questão de frisar, quando a reafirma pela boca de um personagem
que comenta estar lendo O Castelo. Filmverlag
der Autoren/Pro-ject FilmProduktion/Tango Film. 124 minutos.
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