Filme do Dia: Aves sem Ninho (1939), Raoul Roulien
Aves sem Ninho (Brasil, 1939). Direção:
Raoul Roulien. Rot. Adaptado: Raoul Roulien & Eurico Silva, baseado na peça
Nuestra Natacha, de Alejandro Casona.
Fotografia: Moacyr Fenelon. Música: Lyrio Panicalli. Montagem: Nélson Schultz.
Dir. de arte: Ruy Costa. Com: Déa Selva, Rosina Pagã, Celso Guimarães, Lídia
Mattos, Darcy Cazarré, Túlio Berti, Nelson de
Oliveira, Rosita Rocha, Cora Costa, Elza Mendes, João Cabral, Henrique Fernandes.
Vitória (Selva) é uma das muitas meninas espoliadas pelo
rigor e brutalidade de um asilo para meninas órfãs. Aprisionada na solitária
após tentar ajudar uma companheira, consegue fugir e é acolhida por um renomado
professor que a adota. Após muito estudar se forma, mas ao contrário do amigo e
pretendente Léo (Guimarães) e seu grupo de amigos, decide aceitar o convite e
se tornar diretora do próprio orfanato do qual foi interna. Provoca uma
revolução modernizante. As jovens, antes mirradas, tornam-se vivas e cheias de
expectativas. Uma das jovens, no entanto, Dora (Pagã), engravida de uma fuga
quando foi seviciada por jovens filhos da burguesia, sendo acolhida pelo senso
maternal de Vitória. No ápice de seu projeto, no entanto, Vitória é flagrada
pela financiadora do asilo que recebeu péssimas notícias de uma de suas
profissionais quanto ao excesso de liberalidade de Vitória e que já se encontra
a par da gravidez de Dora, destituindo Vitória do cargo. As jovens se revoltam
e ocorre um confronto em que pedem o retorno de Vitória. Rapadura (Mendes), uma
das garotas, morre acidentalmente. Deprimida e desiludida com tudo o
que ocorreu, Vitória recebe seu duplo reconhecimento ao saber através de Léo,
que seu projeto pedagógico foi aceito pelo governo e que, agora, encontra-se
igualmente disposta a se casar com o mesmo.
Precário melodrama financiado por instituição comandada por
Darcy Vargas, que juntamente com Argila,
Caminho do Céu e Romance Proibido, foi considerado, justamente, como peça de
propaganda simpática aos interesses do Estado Novo, sobretudo aqui no que diz
respeito à política educacional e assistencial. Ao contrário do filme de Mauro,
onde sua forte visão artística provocou uma certa dubiedade quanto à
concretização dos objetivos ideológicos pretendidos, aqui não ocorre, ainda que
involuntariamente, nada do gênero. Através de interpretações grandemente
teatrais e mensagens morais pomposas, o filme articula mais uma visão de
auto-sacrificio feminino – o amor e o objetivo ético maior da protagonista
somente poderá conviver após a concretização do último – comum à produção do
gênero. Fazem parte dessa cruzada civilizatória a explicitação de uma juventude
patriótica que, tal e qual Vitória, demonstra seu patriotismo através de
ações que privilegiem os menos afortunados, ao contrário dos frívolos e
alienados de seu círculo social (numa contraposição bastante semelhante a do
filme de Mauro, ainda que aqui sua protagonista acabe contagiando todo o seu meio o que,
de modo mais verossímil, não vem a ocorrer com Argila). Talvez o que persista de interessante no filme seja o que
se pode perceber nas entrelinhas de seu discurso modernizante. Nesse sentido, o
distanciamento do tempo favorece a percepção de que a cruzada contra os excessos
de autoritarismo nas gestões anteriores do asilo se dá de modo igualmente
autoritário, partindo de decisões unilaterais de Vitória, traindo a própria
concepção autoritária da educação no regime varguista, assim como seu
direcionamento dos menos economicamente favorecidos à prática profissional mais
que ao estudo acadêmico – Vitória chega, a certo momento, a não só decretar o
fim das aulas de matemática quando sugere a extinção das próprias aulas como um
todo, observando deliciada as atividades lúdicas ou os novos talentos para a
vida prática que brotam repentinamente. E, de modo peculiar, cumpre frisar que
a seqüência que evidencia a modernização das instalações do asilo com a chegada
de Vitória serve igualmente para um generoso compartilhamento com a intimidade
das garotas no banho, bastante ousado para a época. Entre inúmeras outras
curiosidades que poderiam ser aqui destacadas se encontra a do habitual
sacrifício do elemento socialmente marginalizado, seja homossexual seja no caso
aqui a única garota negra – é através de sua morte que o asilo é fechado pelas
autoridades e a tese de modernização de Vitória ganha força. Ressaltando que
tal sacrifício se dá mais involuntariamente pelo realizador que propriamente
pela diegese, onde a garota é muito benquista por suas companheiras.
Utiliza-se, em certos momentos, de uma montagem dinâmica, que somada às
caricaturas que constrói das figuras que compartilham de uma pedagogia
ultrapassada, traem uma possível influência, ainda que evidentemente
epidérmica, do cinema de montagem e do processo de tipificação dos personagens
desenvolvido por Eisenstein na década anterior. Mesmo com toda a precariedade
de suas interpretações, seu moralismo rasteiro, sua continuidade derrapante,
roteiro repleto de pérolas do inverosímil e sua pós-sincronização dos diálogos sofrível,
não se pode deixar de frisar que o maniqueísmo presente aqui na sua crítica à
desumanidade do sistema asilar se reproduz em essência, nas versões atuais de
filmes de denúncia contra instituições repressoras, como pode se perceber em Bicho de Sete Cabeças. Entre os
elementos dramáticos mais mal resolvidos do filme, encontra-se a seqüência na
qual Vitória é acolhida por aquele que se tornará seu futuro padrasto, e toda a
cena é construída aparentemente a sugerir oportunismo sexual. Roulien, ex-galã
em Hollywood, teve a fama de azaradamente ter quase todos os filmes que dirigiu
perdidos em acidentes. Raoul Roulien Prod. Cinematográficas. 98 minutos.
Estou decepcionado por não haver uma cópia de AVES SEM NINHO", que deixei de assistir quando criança. Tenho quase 83 anos de idade e esta é uma frustração que nunca esquecí!
ResponderExcluirÉ uma pena mesmo, Seu Francisco. Tive acesso a uma cópia em VHS telecinada pela Cinemateca Brasileira na época que fiz uma pesquisa sobre esse filme e outros dois, cerca de uns dez anos atrás.
ResponderExcluira autorização para a cópia foi conseguida junto a última mulher de Roulien, então ainda viva.
ResponderExcluirOu Cid, sou o neto da Lídia Mattos, e gostaria de obter uma cópia desse filme por favor. Meu email> gustavobrodaloes@gmail.com
ResponderExcluirUm abraço
Oi Gustavo. Só agora vi o seu comentário, infelizmente, desculpe-me. Estudei esse filme e tive acesso a uma cópia em VHS da Cinemateca Brasileira, mas me mudei tantas vezes determinado período da minha vida (8 vezes em 7 anos) que não sei se ainda tenho esse material. Acho que passei o filme para DVD, há mais de quinze anos.
ResponderExcluirHonrado com sua presença aqui. Na época que fiz minha pesquisa, Lídia morava no Rio, mas me disseram que estava com Alzheimer, e não adiantava eu tentar entrevistá-la. Ela também está em outro filme que estudei, "Argila", de Humberto Mauro, que também há resenha postada aqui no blog, salvo engano. Essas resenhas foram escritas muito tempo atrás. Talvez você consiga uma cópia com o colecionador que mora em Recife, Cláudio Brayner. Ele me conseguiu uma cópia do terceiro filme que analisei nesse trabalho, "Romance Proibido", à época.
se ele não tiver, volte a entrar em contato...
Grande abraço.