Uma Rural Incomoda Muita Gente
Por Pierre Lucena
Em meio à chatice que tem se tornado a cidade do Recife, o produtor cultural Roger de Renor, uma das pessoas que pensam na cidade, resolveu inovar.
Pegou uma Rural Willys toda iluminada e resolveu organizar um “ajuntamento” de gente na Rua da Aurora, à beira do Rio Capibaribe. O espaço fica em frente à Assembleia Legislativa do Estado, em um lugar onde à noite é mais fácil enxergar um pé de cobra do que um pé de gente.
Estive na primeira sexta-feira do evento, que juntou pouco mais de 100 pessoas, que apenas foram à rua para ouvir música e tomar uma cerveja do único ambulante que por ali se aventurou naquela noite. Como em Recife, especialmente naquela área do Centro, praticamente não há lugar para sair, o povo foi se chegando e o ajuntamento foi aumentando.
À beira do Rio Capibaribe, a Rua da Aurora é um dos espaços mais bonitos do Recife. Durante algum tempo teve parte dos casarios restaurados, e mais à frente, perto do Bairro de Santo Amaro, tem sido objeto de desejo das construtoras. Como a Prefeitura não teve (nem tem e aparentemente nunca terá) a menor noção de planejamento urbano, vários projetos residenciais isolados em formato de espigão começam a despontar pela região. O final fantasmagórico disso (muros de 7 metros e ruas propícias a carros) todo mundo já sabe, mas o Poder Público faz questão de não enxergar.
E voltando ao caso, com apenas uma Rural Willys e muitos amigos, Roger de Renor conseguiu o que a máquina pública não é capaz de fazer há tempos: dar vida à Rua da Aurora.
Mas em Bagdami parece ser proibido se divertir, a não ser que você esteja enfiado em uma das cápsulas de consumo espalhadas pela cidade, curiosamente pertencentes a um só dono. Aliás, a tendência para o monopólio/oligopólio na economia recifense é algo que impressiona qualquer um. Por aqui os shoppings têm um só dono, metade dos bares da cidade é do mesmo grupo, a classe média só quer morar em prédios feitos pela mesma construtora e até as lojas populares do Centro já pertencem ao mesmo chinês, que por sinal é o mesmo que abastece grande parte dos camelôs.
Como Roger de Renor e parte da cidade que pensa se negou a ficar indoor, em um daqueles estranhos casos de ordenamento fora de hora, a Prefeitura do Recife colocou toda a máquina pública para acabar com o evento. Como Bagdami é um lugar curioso, duas semanas antes jornalistas do Jornal do Commercio, porta voz do capital local, começaram a questionar no Grupo Direitos Urbanos (no Facebook) o fato da Rural estar estacionada pela Rua da Aurora.
Sob o argumento de que era um carro sobre a calçada, a CTTU chegou para multar a Rural. Logo após, por uma coincidência que só acontece neste Brasil, chega um carro do Departamento de Controle Urbano para questionar o alvará do evento que, diga-se de passagem, contava com o apoio da própria Prefeitura. De maneira ainda mais curiosa, até a Polícia chega por lá para acabar com a festa.
Como o morador mais próximo estava 500 metros dali e o único possível incomodado seria o vigilante da Assembleia Legislativa, só podemos chegar à conclusão de que se trata de uma ação orquestrada com o único intuito de proibir a organização de um grupo de pessoas que questiona e critica os destinos e os donos da cidade. A não ser que se acredite no argumento colocado pelos jornalistas do carro na calçada, coisa que nem a Velhinha de Taubaté acreditaria.
Muito mais do que um evento, a Rural de Roger é quase um grito de socorro de uma cidade que se encapsulariza cada vez mais. Recife tem se tornado uma cidade fantasma, com calçadas mortificadas sem comercio de rua, onde muros de 7 metros separa o habitante da rua. Enquanto o mundo todo busca soluções humanas para o transporte coletivo, aqui se constroi uma via sobre o mangue da cidade ao custo de 600 milhões, que seria o suficiente para a construção de um VLT moderno ligando a zona sul até o centro da cidade.
E enquanto o capital imobiliário local não consegue enxergar nada além do lote e o Poder Público pensa que ordenar a cidade é limpar a rua para o carro passar, Recife vai caminhando rapidamente para se transformar em uma cidade fantasma. O retrato disso é o que acontece no Bairro de Boa Viagem, que observa academias, bares, restaurantes e galerias fechando e dando lugar a edifícios, cujos moradores em algum tempo terão que se deslocar 10 km. para comprar um pão na padaria.
E como as curiosidades não param por aí, enquanto o aparato de ordenamento acabava com a festa das pessoas na deserta Rua da Aurora, a Construtora favorita do establishment batia estacas loucamente à meia noite em uma área residencial da cidade, tornando a vida da vizinhança insuportável.
Mas neste caso o ouvido estatal se faz de surdo.
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