Filme do Dia: Hannah e Suas Irmãs (1986), Woody Allen (segunda resenha)
Hannah e Suas Irmãs ((segunda versão). Direção
e Rot. Original Woody Allen. Fotografia Carlo Di Palma. Montagem Susan E.
Morse. Dir. de arte Stuart Wurtzel. Cenografia Carol Joffe. Figurinos Jeffrey
Kurland. Maquiagem e Cabelos Craig Lyman & Romaine Greene. Com Barbara
Hershey, Michael Caine, Mia Farrow, Dianne Wiest, Woody Allen, Max Von Sydow,
Maureen O’Sullivan, Carrie Fisher, Lloyd
Nolan.
Numa família de classe média alta, o
dia de ação de graças provoca desejo em Elliot (Caine) pela cunhada Lee
(Wiest), então envolvida com um homem bem mais velho e recluso, o artista
plástico Frederick (Von Sydow). Enquanto a insegura e errante Holly (Wiest)
busca apoio financeiro da irmã mais bem situada financeiramente, Hannah
(Farrow), esposa de Elliot. E o ex-marido de Hannah, Mickey (Allen) se
desespera com a possibilidade de possuir um tumor no cérebro.
Houve uma época em que a regularidade
dos lançamentos dos filmes de Allen parecia ser mais um indício sólido (e
igualmente enganador) de uma negação da mortalidade e plenitude da vida. Outra
foi, de onde parte esta escrita, e bem antes desta até, de duas certezas quase
absolutas: 1) da expectativa de superação desta produção na filmografia do
realizador, acompanhada ano a ano de uma decepção, neste sentido ao menos; 2)
da constatação desta ser a melhor produção do realizador. E até mesmo de se
deixar de acompanhar seus lançamentos, após algo tão tosco quanto O Festival
do Amor. Compactou-se nesta produção o melhor que o realizador poderia
estabelecer antes ou depois em sua carreira, melhor até que várias produções de
um dos mestres (e suas referências) nos quais se apoiou, Ingmar Bergman,
presente aqui nas participação de um ator
em momentos diversos de sua filmografia, Max Von Sydow, assim como na
costura da própria narrativa. O uso da música (Harry James, Bach), desde os
primeiros segundos do filme, traz uma identidade e diálogo com as situações e
personagens de uma maneira como poucos fizeram à época no cinema americano,
soando forçado ou empostado o uso de música não original nas trilhas de seus
filmes – o Adágio de Samuel Barber em Platoon ou o Cânon em D
Maior de Pachebel em Gente como a Gente, para citar dois filmes
famosos da década; e mesmo o uso
trivializado de jazz antigos a
retalho nos próprios filmes de Allen. E um uso incomum desta música se
transforma, em um momento, na mais sagaz
das contraposições testemunhadas pelo cinema
entre o amor sublimado no tema de Bach (o Concerto para Cravo em F
Menor) e sua irrupção física, desordenada, imperfeitamente humana do
impulso sexual, quando Elliot avança sobre Lee, fazendo inclusive com que a
agulha do disco provoque um salto sobre o vinil. Noutros momentos parecia tão
acalentadora quanto a poesia de e. e. Cummings. Ou auxiliando na breve irrupção
de prazer, quando Mickey se descobre saudável. E vários e vários outros
exemplos poderiam ser enumerados. Nunca houve interpretações tão afinadas em seu
elenco, sobretudo das três irmãs, mas igualmente de Caine. É dele a situação
ética-moral mais delicada do filme. E até nisso Allen consegue estabelecer o
drama de consciência de seu personagem com muita mais densidade e menos
artificialidade que o posterior Crimes e Pecados, mais dirigido a este
objetivo. Ao usar do artifício de segmentos relativamente independentes uns dos
outros, com uma tela negra a antecipá-los com títulos, o primeiro deles “Nossa,
como ela é bonita...”, a nos apresentar toda a sensualidade espontânea de Lee
vivida por Barbara Hershey, a se deslocar pela primeira das três reuniões de
Ações de Graças, temos acesso imediato e sem maiores mediações a dinâmica que
valerá para o filme como um todo. E quem achar que o ponto de vista será de
Elliot, por conta de sua voz over a inicialmente nos guiar, estará redondamente
enganado. De vários dos personagens teremos acesso a seus pensamentos, em
alguns dos casos como este, ou o que Holly, no provável melhor papel de toda a
carreira de Dianne Wiest, comentará a partir do que acredita ser preterida por
uma colega no jogo de sedução de um arquiteto pelo qual se encontram
interessadas, haverá casamentos perfeitos; no primeiro caso, entre o comentário
e as imagens que observamos; no segundo da máscara facial de Wiest e a carga de
ressentimento acumulada e rejeição que expressam. O momento dramático mais bem
resolvido é o que a câmera rodopia em meio a uma conversa acalorada entre as
três irmãs. O cômico, o que Mickey relembra uma reunião com um casal de amigos
e sua ex-esposa, cujo objetivo, um tanto delicado, era procurar de Tony, e de
sua companheira, a aceitação de uma inseminação artificial, e que Mickey pula
etapas e alvoroçadamente lança “a questão é que precisamos de esperma.” Allen é
o contraponto cômico que não chega a interagir, no mesmo espaço e tempo, com as
outras personagens. E mesmo quando o vemos casado e novamente ingressando na
família, apenas o observamos a parte com sua esposa e não no recorte da família
como um todo. E este equilíbrio difícil
entre o dramático e o cômico burla o sentido de todas as suas produções
anteriores – a mais próxima a ter se aproximado antes seria Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, com uma inclinação para o cômico bem maior, que aqui vai no
sentido oposto, mas nem de longe com os excessos do mais bergmaniano de seus
filmes, Interiores. Há ainda a notável, mesmo que discreta presença dos
veteranos Lloyd Nolan e Mauren O’Sullivan (mãe de fato de Farrow) vivendo os
pais das irmãs, quase sempre às turras entre si. E momentos que soam como um
aquecimento na alma, do teste das duas amigas, sempre competitivas
implicitamente, com a voz aguda e naturalmente um pouco chorosa de Wiest e o
leve arquear das pernas, a demonstrar sua tensão, da April de Carrie Fisher.
São como sismógrafos a medir não terremotos mas sentimentos, de uma forma tão
apurada quanto alguns dos melhores momentos de Cassavetes. Não se trata de um
filme perfeito, como demonstra algo artificioso na interpretação de Von Sydow
e, sobretudo, seu encaminhamento sentimental final, embora mesmo neste arranjo
novelesco de todos com seus pares se possa observar uma ponta de sagacidade, ao
se constatar a continuidade de Lee com o modelo professoral de homem presente
anteriormente em Frederick e Elliot. Não se espere nada próximo do identitarismo
que começa a ganhar autoridade na década sobre o cinema, a única negra
observada é criada (perfil, grosso modo, aliás não muito distante da Manhattan
de três ou quatro décadas após) e a referência aos gays, em um dos poucos
traços mais explícitos de seu tempo, diz
respeito ao comentário ligeiro sobre um dentista conhecido de uma personagem,
temeroso de contaminação. Em participações, creditadas ou não, Barry Jenkins,
Sam Waterston e John Torturro, assim como figurações de filhos adotivos do
então casal Farrow-Allen, Moses Farrow e Soon-Yi Previn, dentre outros. |Orion
Pictures/Jack Rollins & Charles H. Joffe Prod. para Orion Pictures. 107
minutos.
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