Filme do Dia: Ana dos Mil Dias (1969), Charles Jarrot

 


Ana dos Mil Dias (Anne of the Thousand Days, Reino Unido, 1969). Direção Charles Jarrott. Rot. Adaptado Bridget Holand, John Hale & Richard Sokolove, a partir da peça de Maxwell Anderson. Fotografia Arthur Ibbetson. Música Georges Delerue. Montagem Richard Marden. Dir. de arte Maurice Carter & Lionel Couch. Cenografia Peter Howitt & Patrick McLoughlin. Figurinos Margaret Furse. Com Richard Burton, Geneviève Bujold, Irene Papas, Anthony Quayle, John Colicos, Michael Holdern, Katharine Blake, Peter Jeffrey, Valerie Gearon, Terence Wilton, Wiliam Squire, Amanda Jane Smythe, Lesley Paterson, Gary Bond.

Tendo um discreto caso com Mary Bolein (Gearon), filha de um cortesão, Thomas (Hordern), Henrique VIII (Burton), então formalmente casado com Catarina de Aragão (Papas), em uma festa se torna obcecado pela beleza e juventude da irmã mais nova de sua amante, Anne (Bujold). Ela, no entanto, encontra-se noiva do filho do Duque de Northumberland, Percy (Wilton). Com o Papa se negando a conceder o divórcio, Henrique decide se casar com Ana, mesmo antes de se separar legalmente de Catarina, conseguindo convencer a principal liderança eclesial, Wolsey (Quayle), que posteriormente é banido de seu cargo e tem sua propriedades confiscadas pois Henrique se torna agora líder único da Igreja e do Estado. Indisposto contra concessão do título de Rainha à Ana, Thomas More (Squire) se torna motivo de ódio de Ana, que não se cansa até vê-lo condenado à morte. Ela, no entanto, tem a intensidade do amor conjugal amenizada quando dá a luz não o esperado filho, mas uma filha, Elizabeth (Smythe). O rei passa a se interessar por Jane Seymour (Paterson), aia de Ana. Percebendo tudo, Ana a enviara para longe, mas ela retornou como moeda de troca pela morte de More. Após o segundo filho, agora natimorto, Henrique perde a paciência e pede a seu novo braço direito, Cromwell (Colicos), que consiga um jeito de afastá-la de si. Este inventa uma traição acusada a partir de tortura, do cantor da corte, Smeaton (Bond) e em julgamento posterior, faz com que o pai concorde com a denúncia de incesto entre os irmãos, diante dos filhos. Ana é levada ao patíbulo, mal sabendo ela que a sua consideração de sua filha futuramente governar a Inglaterra se concretizaria tempos depois.

Em certo sentido, esta versão de um fragmento da vida de Henrique VIII parece ser mais “honesta” que muitas outras, inclusive, e talvez sobretudo, a de Aïnouz (Firebrand) ao evidenciar sua aberta filiação a uma peça. Não se parece querer evocar a vida na corte ou os modos de agir da realeza da época, mas antes chistes e situações teatrais. A autoconsciência de serem personagens, amplificada em nomes como Burton, e vários outros do elenco, é quase automática, vindo de quem vem. O mesmo possivelmente não poderia ser dito de Bujold. Ou de Irene Papas.  Muitos países foram tradicionalmente reconhecidos por suas reservas de talento. No caso do cinema italiano, a quantidade de diretores de comprovado vigor artístico. Com os britânicos são os atores e atrizes a preencherem os quadros, sobretudo como coadjuvantes, oriundos do teatro, e provavelmente a se sentirem em casa, que assomam, com destaque para Quayle e William Squire, como Thomas More e, apenas um pouco abaixo, Colicos como Cromwell. Ao contrário do Henrique VIII vivido por Jude Law no filme do brasileiro, mais próximo de uma evocação de Brueghel descrita por Bakhtin, o de Burton transcende racionalidade, mesmo em seus momentos de ira, como passaporte para as intrigas históricas que envolvem o cisma  com a igreja católica, e o surgimento do anglicanismo. Do mesmo modo, seu estilo é sem firulas, sem respiros e até a intimidade é observada como se observada por todos fosse...e não está tão distante de sê-lo. O cardeal Wolsey, sem grandes alardes, pede a amante para se deslocar para um cômodo outro enquanto recebe visitas inesperadas. O amor entre Bolena e VIII pode ser lido dentro da convenção da mulher altaneira e orgulhosa a deixar o homem com mais poder fora de si, em um desarranjo que de alguma maneira deverá ser resolvido. No caso de Bolena, sem tanta dificuldade, pois o amor romântico da juventude rapidamente parece esquecido diante da sede por poder. Ou melhor, é deixado de lado pelo pragmatismo, mas não esquecido. Será a reserva que não se dobrará, tal qual o rei, a tudo que possa fazer nas relações entre Estado e Igreja, usurpando o poder e os bens da última, para apenas se unir ao objeto de seu desejo. Ou melhor,  Bolena dobrar-se-á apenas um pouco adiante, o que também habitualmente ocorre em tais retratos de uma vida conjugal iniciada contra a vontade, de Sjöström a Rossellini. Seu final observa tudo com relativa distância, apenas prejudicada em parte pela imagem última da gartotinha de costas, com sua boneca, sobre a repetição da afirmação de Bolena de que governaria a Inglaterra trazendo mais conquistas a Inglaterra que o atual rei ou qualquer de seus rebentos do sexo masculino. Elizabeth Taylor surge em uma ponta, mascarada, alvoraçada e correndo como cortesã.  Jarrot traz a ausência de estilo como estilo (como complementaria com seu Mary Stuart, Rainha da Escócia, de dois anos após e elenco completamente renovado, a guisa de disfarçar a indisfarçável mesmice. E sua filmografia menos conhecida é preenchida, no restante, por toda sorte de trivialidades, onde uma nota recorrente são biografias televisivas como as de Lyndon Johnson e Eisenhower em meio a constrangedoras apostas em vários gêneros, como é o caso de Horizonte Perdido, quatro anos após. | Hal Wallis Prod. 145 minutos.

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