Dicionário Histórico de Cinema Sul-Americano#114: Beatriz Guido

 


GUIDO, Beatriz (Argentina, 1924-88). Roteirista de quase todos os filmes de seu marido, Leopoldo Torre Nilsson, de 1957 em diante, Beatriz Guido foi a maior dentre todos os rosteiristas do cinema argentino e uma importante romancista "raivosa" (anti-peronista) dos anos 50. Nasceu em Rosário, província de Santa Fé, de uma família proeminente (filha de um arquiteto reconhecido e de uma atriz uruguaia). Estudou Filosofia e Letras na Universidade de Buenos Aires. Em 1954, Guido escreveu seu primeiro romance, La Casa del Ángel, adaptada em seu primeiro roteiro para o cinema por Torre Nilsson em 1957. Esta colaboração foi significativa, historicamente, porque se transformou em uma tendência contra os filmes argentinos baseados em romances europeus. Guido escreveu sobre uma oligarquia de pessoas da classe alta desaparecendo e pondo seus personagens em interiores góticos e opressivos.  Suas histórias foram frequentemente ambientadas no passado, e como representadas visualmente através da direção estilizada de Torres Nilsson, é fácil de se perceber como os filmes que ela escreveu foram rapidamente compreendidos pelos públicos europeus. O que tem sido menos reconhecido em sua obra, no entanto, é o constante ataque ao patriarcado argentino e a voz subjetiva dadas às personagens femininas, que estão bem a frente de seu tempo. 

De 1957 a 1963 escreveu oito roteiros para Torre Nilsson baseados em seus próprios contos, romances e uma peça, Y Muerieran en la Hoguera (como Homenaje a la Hora de la Siesta/Quatro Mulheres para um Herói). No mesmo período, um de seus contos, "La Representación", foi adaptado em um filme dirigido por Fernando Ayala, Paula Cautiva (1963), e trabalhou como roteirista em outro filme de Nilsson, Setenta Vezes Siete (1962). Quatro das primeiras cinco colaborações foram adaptadaas de romances de Guido e talvez os melhores filmes do diretor: La Casa del Ángel, La Caída (1959), Fin de Fiesta (1960), La Mano en la Trampa (A Mão na Armadilha, 1961). Três deles constituem uma trilogia semi-autobiográfica sobre uma jovem mulher (interpretada nos três filmes por Elsa Daniel) crescendo e tendo que se deparar com angustiantes situações de comportamento predatório masculino e aprisionamento. Em La Casa del Ángel, Daniel interpreta Ana em uma história que se desenrola em flashback e ocorre na década de 1920, e na qual ela é estuprada por um amigo esgrimista de seu pai.

Em A Mão na Armadilha, o mais deprimente dos três, assumimos que a jovem Laura (Daniel) seguirá posteriormente os passos de sua tia reclusa rumo à loucura. Há ao menos um pouco de comédia em La Caída, com crianças independentes causando estragos, roubando comida e lutando com a sua própria mãe. Aqui Albertina (Daniel) é uma marginal e relativamente sem enquadramento de classe. Chega a Buenos Aires para frequentar a universidade e dividir aposentos com uma família "louca" de quatro crianças e a mãe delas, acamada e asmática. Albertina é ingênua e, portanto, um alvo a ser explorado pelos que a cercam, e sua inocência sexual a leva a ser visada por um advogado jovem e politicamente conservador pelo qual se sente atraída (mas não por suas visões políticas) e pelo Tio Lucas (Lautaro Múrua), de cujos avanços, ela continuamente tenta escapar.

Todos os três filmes exibem uma atmosfera incrivelmente sufocante e uma ausência de opções para as jovens dentro do patriarcado. Fin de Fiesta é o romance e o filme que fizeram com que Guido fosse rotulada como "anti-peronista", mas em retrospecto o filme é melhor compreendido como um ainda mais forte ataque a uma sociedade dominada pelos homens que na trilogia de Guido, e em sua revelação da corrupção na cobiça masculina após o poder político nos anos 1930, alusões ao contemporâneo final dos anos 50 são claramente pretendidas. Com a exceção de um dos netos do político oligarca, a se tornar padre, todos os personagens masculinos são falhos por suas ambições e se comportam brutalmente em algum momento. 

Guido e Torre Nilson se casaram em 1959 e continuaram a trabalhar de maneira muito aproximada, adaptando o conto "Convalescencia" dela em Piel de Verano (Pele de Verão, 1961). Este filme, estrelado por Graciela Borges, como outro filme baseado em um conto de Guido, La Terraza (1963), que foi notavemente diferente em suas locações externas, um jardim no terraço, e seu foco na elite jovem argentina contemporânea. A série barroca do casal culminou com El Ojo de la Cerradura (The Eavesdropper, 1966), filmado em inglês. Por esta época, três de seus filmes haviam sido incluídos na competição em Cannes e três em Berlim. Seus filmes foram distribuídos em vários países e muito se escreveu sobre eles. Em The Contemporary Cinema, Penolope Houston devotou duas ou três páginas aos filmes do casal e escreveu: "Torres Nilsson e sua esposa, e roteirista, Beatriz Guido, possuem um tema preferido: a inocência corrompida, a inocência como o logro da experiência, a inocência avançando trepidante e esperançosa rumo a sua própria destruição." (1963, p. 159).

Infelizmente, Torres Nilsson não foi capaz de manter a mesma aclamação em sua obra posterior, e se pode indagar até que ponto isto se deve a ter se afastado dos textos adaptados de Guido. De 1967 a 1975 Guido escreveu material para dez dos filmes de Torres Nilson. Somente dois destes foram roteiros originais e todos os outros foram adaptações de outros escritores. Mas em 1976, o último filme de Torres Nilsson como diretor, Piedra Libre (uma expressão idiomática que significa "casa livre"), foi baseado em um dos contos de Guido. Sua obra nunca mais atingiria o nível de criatividades das primeiras colaborações, e é possível que as constribuições de Beatriz Guido aos filmes de seu marido tenham sido subestimadas. Uma tese de phd escrita em 1974 por Christine Mary Gibson, "Técnicas Cinematográficas na Prosa Ficcional de Beatriz Guido" sugere que a literatura argentina revela uma compreensão tão elevada do cinema que bem pode ter sido responsável por muito do estilo visual, assim como da caracterização e da ação. Ela tornou-se uma adida cultural da embaixada argentina na Espanha, e morreu em Madri, quatro anos após. 

Texto: Rist, Peter H. Historical Dictionary of South American Film. N. York: Alfred A. Knopf, 2014, pp. 297-99.

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