Filme do Dia: Entre Mulheres (2022), Sarah Polley

 


Entre Mulheres (Women Talking, EUA, 2022). Direção Sarah Polley. Rot. adaptado Sarah Polley, a partir do livro de Miriam Toews. Fotografia Luc Montpellier. Música Hildur Guձnadóttir. Montagem Christopher Donaldson & Roslyn Kalloo. Dir. de arte Peter Cosco & Andrea Kristof. Cenografia Friday Myers. Figurinos Quita Alfred. Maquiagem e Cabelo Ashley Rocha & Antoinette Julien. Com Rooney Mara, Judith Ivey, Emily Mitchell, Kate Hallett, Ben Wishaw, Liv McNeil, Claire Foy, Sheila McCarthy, Jessie Buckley, Michelle McLeod, Kira Guloien, Shayla Brown, Frances McDormand, August Winter.

Em uma fazenda um tanto afastada de algumas comodidades modernas, um grupo de mulheres, após uma série de estupros coletivos e maus tratos, reúne-se com frequência para a tomada de decisão que leva a três opções, permanecer e nada fazer, permanecer e lutar ou partir. O grupo, reunindo cerca de uma dúzia de mulheres, sofre uma baixa quando a veterana Cicatriz (McDormand), discordando das discussões em curso, retira-se do grupo, levando consigo sua filha e neta. Junta-se ao grupo, o sensível professor dos meninos, August (Whishaw), cuja mãe, a quem amava intensamente, foi morta em uma destas ações violentas masculinas. August  é o relator das discussões, já que nenhuma das mulheres foi alfabetizada. Também há a presença do homem trans Melvin (Winter). Dentre as mais participantes do grupo se encontram Mariche (Buckley), esposa do abusivo Klaas, Ona (Mara), a mais articulada das mulheres e bastante enlevada por August, e Greta (Mccarthy), de idade mais avançada. Dentre o que pesam em sua decisão, que fica cada vez mais dividida entre partir ou não, se encontra o abandono dos maridos e irmãos, o desconhecimento do mundo e até mesmo da geografia próxima e os princípios éticos e religiosos, assim como a adesão à violência ou os princípios do pacifismo.

Polley, com sua adaptação, parece efetuar uma alegoria que seria o equivalente a Revolução dos Bichos feminista. Ao contrário da obra clássica de Orwell, no entanto, é uma revolução silenciosa, que não busca o confronto, até por se encontrar desfavorável em termos de força física e status comunitário. E o filme, a seu favor, conta com esta investida que será melhor vista se abraçada esta possibilidade alegórica que plenamente realista, um tanto original e incomum no cenário contemporâneo a sua produção ou mesmo de qualquer época. Dito isto, há muito a se depurar de sua proposta militante disfarçada quase em filme de época – na verdade, muito tempo após a história iniciada se saberá que se passa em 2010, numa comunidade religiosa menonita, espécie de microcosmo potencializado das injustiças e incúrias de um mundo mais amplo. Porém, há uma escassez de percepção da vida prática e atividades destas mulheres em correspondente relação com o acaloramento das discussões, acertadamente densas, por mais inverossímeis que possam sugerir em um primeiro momento (educação formal não é sinônimo de inteligência ou percepção de si e dos outros), ao qual se soma a pouca compreensão do que de fato ocorreu, ou vem ocorrendo com alguma regularidade, o que desliza convenientemente a sua posição para os homens da comunidade como um todo e, por extensão da alegoria, para o mundo. Estes, por sua vez, encontram-se convenientemente banidos de ganharem voz ou representação no filme, em um efeito de invisibilização ao qual os grupos “minoritários” tanto clamam para si, aumentando ainda mais a sensação de impossibilidade comunicativa entre as partes, tão típica de apelos, seja à esquerda ou extrema-direita, do caldo societal de sua época. A exceção vem a ser uma prática caricatura de homem mais sensível que as próprias personagens femininas,  espécie de Anthony Perkins repleto de culpa e autopunição por ser homem, e incapaz de apresentar fisicamente seu desejo por Ona, e vice-versa, numa elaboração de castração que se poderia pôr na conta de um desejo latente de poder e humilhação reparadora nesta fantasia feminista. Seria o extremo oposto de outa fantasia de quase um século antes, As Mulheres, ainda mais radicalmente excluído de personagens masculinos, mas trabalhando em cima de estereótipos femininos rasos como o da futilidade e disputa interna por homens. E, ainda assim, apresentando mais vitalidade, inclusive em termos de estilo, e humor, qualidades não exatamente aqui presentes, assim como evitando o proselitismo. Que, na voz de August, afirma que todo garoto de 14 anos já seria um risco ao grupo feminino, caso não devidamente civilizado a coibir sua energia física e sexual polimorfas. Caso se fosse cair numa aproximação mais realista dos eventos nos quais se inspira, no limite se chegaria a um grafismo, em última instância a contemplar uma vez mais os estupradores. A opção a este é como as duas faces de uma moeda, trazendo o seu diferencial a namorar com o excêntrico e mesmo o épico, e um combo de lugares-comuns a reboque, sem esquecer de posicionamentos ilustrados, aí talvez com uma ponta de exagero, tais quais o de Ona, a imaginar que em última instância os homens perpetradores das horríveis sevícias seriam igualmente vítimas de um modelo social perverso. Extraordinário trabalho de fotografia, porém quando foge da teatralidade dos diálogos no celeiro, cai-se em uma atmosfera visual em alguma medida devedora da estética da câmera baixa e inquieta de Terrence Malick. |Hear-Say Prod./Plan B Ent. para Orion Pictures/Universal Pictures. 104 minutos.

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