Filme do Dia: A Bela da Tarde (1967), Luis Buñuel
A Bela da Tarde (Belle de Jour, França/Itállia, 1967). Direção: Luis Buñuel. Rot.
Adaptado: Luis Buñuel & Jean-Claude Carrière, a partir do romance homônimo
de Joseph Kessel. Fotografia: Sacha Vierny. Montagem: Louisette Hautecoeur.
Cenografia: Robert Clavel. Figurinos: Hélène Nourry. Com: Catherine Deneauve,
Jean Sorel, Michel Piccoli, Geneviève Page, Pierre Clémenti, Françoise Fabian,
Macha Méril, Muni, Maria Latour, Francisco Rabal, Georges Marchal, Francis
Blanche, Iska Khan, Marcel Charvay.
Séverine
(Deneauve), é uma dona de casa burguesa, que vive uma vida relativamente
asséptica com o marido médico, Pierre (Sorel). Certo dia, uma amiga
confidenciou que uma conhecida se tornara prostituta por vontade própria. O
libertino amigo do casal, Henri Husson (PIccoli), conta-lhe como eram os
prostíbulos quando os frequentava e lhe fala um endereço. Séverine vai ao mesmo
e após vacilos, é recebida pela proprietária, Madame Anaïs (Page), que a acolhe
entre entusiasmada e protetora, e a batiza como Bela da Tarde. Séverine afirma
que somente pode ficar à tarde. Ela passa a trabalhar com as outras duas
garotas, bastante colegas. Dentre as excentricidades de seus clientes,
encontra-se um oriental (Khan), que possui uma fixação em uma caixinha que
carrega consigo, um professor (Charvay) que odeia ser humilhado, ou o Duque
(Marchal), que faz com que Séverine finja ser um cadáver em um caixão, com
apenas um fino vestido transparente a cobrir sua nudez. Um dos clientes, o
jovem e destemperado gangster Marcel (Clémenti) se torna obcecado por Séverine.
Quem também retorna ao bordel, após muito tempo, é Henri, que se recusa a ficar
com Séverine, devido o seu desejo por ela se encontrar associado ao recato de
sua figura de mulher. Através de seu
parceiro, Marcel fica sabendo da moradia de Séverine e vai até lá para tentar
chantageá-la a voltar a se relacionar com ela, mas Séverine resiste. Pouco
depois ele atira contra Pierre e foge, sendo morto pela polícia. Sobrevivendo paralítico,
Pierre e Séverine, recebem a visita de Henri, que se encontra disposto a contar
toda a verdade a Pierre.
É impossível não
evocar o universo hitchcockiano, por mais distinta que seja a proposta de
Buñuel, ao menos em dois aspectos, ou talvez três. Primeiro, a tentativa de
controle absoluto sobre o apresentado, deixando pouca margem ao que fuja dos
intentos de seu realizador. Depois, a relação entre desejo e culpa,
religiosidade e carnalidade. Por fim, sua heroína, loura como as protagonistas
de alguns dos filmes mais célebres do realizador inglês. Sucess de scandale à época de seu lançamento, o filme praticamente
pavimenta o que se tornaria a marca registrada do realizador em sua fase final,
mesclando uma dimensão onírica e surreal com o que de mais trivial e cotidiano
se poderia imaginar das situações. Em meio as suas evocações psicanalíticas,
observadas aqui de forma mais demarcada que em alguns filmes posteriores dessa
fase, enquanto fantasias de Séverine, Buñuel não deixa de fazer uma explícita
referência ao seminal Acossado
(1959), de Godard, no momento em que o Herald
Tribune é vendido próximo ao Arco do Triunfo, sendo que, tal como
Hitchcock, que aliás apreciava essa produção,
Buñuel também surge numa ponta, sentado em um restaurante. Brincando, ao
que parece, conscientemente, com o desejo de observar alegorias em muito do que
dispôs como enigmático ou não resolvido, inclusive seu final, evocativo, de sua
obra de estreia, Um Cão Andaluz,
Buñuel parecia troçar com as interpretações críticas de suas obras. Seu elenco
de apoio é um dos grandes trunfos, algo que o cineasta tirará partido ainda
mais quando abolirá o protagonismo restrito a uns poucos personagens (tal como
em O Discreto Charme da Burguesia),
como Clémenti, que ganhará destaque internacional a partir dessa produção, e
também de Piccoli ou Page. Produzidos pelos célebres Irmãos Hakim que, tal como
em O Eclipse, de Antonioni, foram
responsáveis por alguns cortes, como o da cena em que o Duque admirava o caixão
que representaria sua filha em meio a uma missa, com um quadro de Cristo ao
fundo, vinculando explicitamente a dimensão do desejo com a do fervor religioso. A desconstrução do desejo, ou melhor, sua
formulação a partir de fantasias e fetiches muito próprios, já havia sido
interpretada pelo cineasta em filmes como Él (1952) e voltaria a sê-lo em Tristana (1970), com a mesma Deneauve ou Esse Obscuro Objeto do Desejo (1977).
Aqui, no entanto, tem-se uma até então rara tentativa de representação do
desejo a partir da perspectiva da mulher, ainda que seu desejo por humilhação,
sempre negado em seu discurso verbal (e nunca observado em sua vida enquanto
prostituta, diga-se de passagem) também é uma recorrente fantasia masculina,
sendo que o filme se baseia em obra homônima de um homem, lançada em 1928,
curiosamente o mesmo ano em que Buñuel ingressava no cinema, e talvez um antigo
desejo de adaptação dele. Prêmio de direção no Festival de Veneza. Robert et Raymond
Hakim/Paris Prod./Five Films. 100 minutos.
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