Filme do Dia: 25 (1975), Celso Luccas & José Celso Martinez Correa

 


25 (Moçambique, 1975). Direção e Rot. Original  Celso Luccas & José Celso Martinez Correa. Fotografia Guilherme Costa & Celso Luccas.

Ao contrário da mera curiosidade histórica a ser despertada pelo que se produziu neste momento e previamente, em apoio ou completamente engajado nas lutas pela independência, o filme de Luccas, em colaboração com Zé Celso Martinez, é de um arrojo estético impensável, daí ser tão pouco visto na própria Moçambique, mesmo tendo sido feito no bojo das celebrações da independência do país, do qual testemunha seu título, referente ao dia da mesma. Em menos de cinco minutos se observa acordes de Rhapsody in White, de Barry White e de Take 5, associados a um discurso a afirmar os dias contados de Lourenço Marques, e do domínio da burguesia portuguesa na mesma. Ou ainda os agradecimentos a Deus de Roberto Carlos em A Montanha sobrepostos às imagens de corpos mutilados pela tortura. E do outro lado do espectro ideológico é musicado um poema do angolano Antonio Jacinto (1924-1991), enfatizando quem de fato movimenta a engrenagem da produção.  Ou Zumbi, do então recém-lançado ábum Tábua de Esmeralda, de Jorge Ben – que curiosamente ou não, também tem canções suas utilizadas no curta O Torneio Amílcar Cabral, produção brasileira e guineense, filmada na Guiné Bissau. E ainda a trilha sonora de O Encouraçado Potemkin, em seu momento preliminar e em crescendo dramático a levar ao massacre de Odessa. E quando se chega ao ápice musical, as imagens são do massacre perpetrado pela Ku Klux Klan em O Nascimento de uma Nação. Sua riqueza de colagem de imagens e sons vai muito além, com cartelas verdes, de plena ironia, interagindo com imagens de arquivos (documentais e também ficcionais, como é o caso de alguns clássicos do cinema colonialista), filmadas pela própria equipe, fotos fixas, voz over de forte conotação didática (“o colonialismo prepara a entrada do imperialismo”), traindo uma muito possível influência do estilo do Solanas-Gettino de A Hora dos Fornos. Assim como a Aleluia, de Haendel, utilizada em vários momentos do filme.  E quando se apresenta uma imagem colonial, materializada sob pedra de uma estátua sobre um pedestal, ouvimos na banda sonora tiros de metralhadora. Como toda obra-libelo, e como seu próprio modelo argentino, não se pode esperar nuances de tal proposta estético-ideológica. A contraposição de dois clássicos do cinema, o de Eisenstein e o de Griffith, por exemplo, mesmo fazendo sentido em termos de história do cinema, não necessariamente possui um correspondente político-social similar. E um afastamento histórico, impossível evidentemente de ser percebido no olho do furacão das celebrações pela independência, traz um gosto amargo quase sempre companheiro dos momentos libertários-utópicos, como se pode perceber em inúmeros casos da ficção moçambicana das primeiras décadas do século XXI. Mesmo menos preso às ortodoxias aprisionadoras em sua abordagem, que boa parte da produção de sua época e lugar, o filme reproduz uma identidade plenamente associada ao que seria estritamente chamado de Tercer Cine, e com momentos bastante comuns a serem observados em qualquer outra produção simpática ao novo regime, como o do treinamento dos revolucionários, a efetuarem um verdadeiro balé sincronizado com suas armas.À título de comparação, no entanto, as imagens de Samora Machel, o novo presidente, são bastante modestas. E, inclusive, no momento de um discurso marcante seu, observamos uma colagem bem de acordo com o espírito do filme, e não as imagens do eloquente e carismático Machel (que poderão ser observadas, inclusive, em outras obras). Além de seu apelo estético vanguardista, há uma ênfase idêntica ou senão maior ao líder assassinado Eduardo Mondlane que fora - uma possível explicação para o boicote ao filme ao longo do tempo e sua dificuldade de acesso – escanteado do poder. Essa cópia, inclusive, não se encontra completa, faltando ao menos meia hora e é uma reprodução de um programa da televisão francesa. Porém, há momentos incontornáveis, como o da declaração oficial de independência, capitaneado por Machel, no qual observamos com maior metragem, a cena da substituição da bandeira portuguesa pela moçambicana, levando o povo ao clamor. E a quantidade de apertos de mão trocados entre Machel e o representante português do governo provisório é uma demonstração, igualmente, de ter sido uma independência até certo ponto outorgada pela ex-metrópole, por mais que a partir das consequências das guerras anti-coloniais, a provocarem a própria derrocada da longeva ditadura portuguesa pouco antes. Em 1974, chega-se a um acordo na metrópole pelo fim das hostilidades bélicas, em setembro. E se acorda para 25 de junho do ano seguinte a independência do país, data de fundação da FRELIMO. Embora alguns saúdem o interesse, aparentemente maior, dos realizadores, por uma celebração do povo na praia, já com o sol nascendo, difícil acreditar em algo espontâneo tal o nível de organização, rituais com a bandeira e homens em fardas no local. Assim como a própria disposição organizada dos presentes, broches e faixas e o número relativamente limitado de participantes. E, mais que tudo, um canto de saudação a FRELIMO. Entre as palavras de ordem contrárias ao imperialismo, colonialismo, etc., encontra-se a prostituição – motivo que levará à perseguição às prostitutas descrita em Virgem Margarida. E o próprio momento de dança está longe de espontâneo, sendo “autorizado” pelo líder com voz no momento. É muito otimismo, ou propaganda ideológica, acreditar-se, como afirma uma voz feminina que, a partir da libertação de zonas do país pela FRELIMO, atinge-se automaticamente o fim do colonialismo. Na retórica da propaganda colonial, um militar afirma palavras vazias, como todos, negros ou brancos, são portugueses e “vocês são tão portugueses quanto nós”, o que se fosse verdade sequer necessitaria ser proclamado, e que não valeria sequer para os próprio descendentes de portugueses lá nascidos, considerados de segunda categoria, como lembra um personagem de O Tempo dos Leopardos. Há até espaço para os famosos versos de Drummond (“no meio do caminho havia uma pedra”). Um momento parece associado a algumas manifestações teatrais de José Celso, em que um grupo de moçambicanos lembra o massacre retirando e segurando ossos dos aparentemente, simbólica ou efetivamente. falecidos no mesmo. Algumas práticas estéticas, como a de encenações contando com a população, evocam o posterior Mueda, Memória e Massacre, lançado dois anos após este. A popularidade das lideranças revolucionárias, em dia de celebração da independência,  é mensurada pelos aplausos da multidão, bastante volumosos para Agostinho Neto, ex-combante e atual presidente de Angola, mas minguados para o que lhe segue.  Infelizmente esta produção tendo iniciada tão criativa, se torna crescentemente próxima das outras contemporâneas, faltando até mesmo mais exemplos como o do fotógrafo a apoiar sua câmera sobre a cabeça de um homem a sua frente, para que não fique tão engessada.|Instituto Nacional de Cinema de Moçambique/Oficina Samba. 90 minutos. Ou, pouco após, flagrar uma série de rostos do público quando da exibição do hino nacional. E observa-se Samora Machel, em um único momento de fala que não é um discurso, mas uma entrevista, e dentre outras coisas afirma sobre a necessidade de surgimento de um Homem Novo, algo em comum com regimes autoritários à direita ou esquerda. Na fala de Machel, relativamente longa, ele acaba por fazer comentários e dá conselhos aos portugueses, lembrando o quão atrasados ficaram sob o regime salazarista. É uma espécie de troco em relação a forma como foram tratados pela impensa e pela comunidade internacional política, embora um troco diferenciado pois ressaltando as melhorias sociais possíveis e não denegrindo a população. O desfile da independência (os realziadores retornaram ao país um ou dois anos após?) os destaques, além das alas caras à revolução, são os carros alegóricos e em meio as relações de sufocamento colonial emerge um carro referente a uma das chagas trazidas pelo colonialismo, a da prostituição, com dois casais em uma referência a bar. E no final, ao menos desta versão, surge o povo aprendendo a soletrar a palavra revolução. Que esta revolução seja vinculada, em imagens pouco antes, aos treinamentos bélicos, talvez ressalte uma tensão continuada, sem interrupções após a guerra da independência, referente a guerra civil. |Instituto Nacional de Cinema de Moçambique/Oficina Samba. 89 minutos.

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Filme do Dia: Der Traum des Bildhauers (1907), Johann Schwarzer

Filme do Dia: Quem é a Bruxa? (1949), Friz Freleng

A Thousand Days for Mokhtar