Filme: Sal para Svanetia (1930), Mikhail Kalatozov


Sal para Svanetia (Jim Shvante (marili Svanets), URSS, 1930). Direção: Mikhail Kalatozov. Rot. Adaptado: Mikhail Kalatozov, a partir do artigo de Sergei Tretyakov. Fotografia: Shalva Gegelashvili & Mikhail Kalotozov. Dir. de arte: Davit Kakabadze.
Esse documentário encenado, impressionante em suas imagens épicas do esforço de toda uma população em torno da escassez do sal – tópico que, na verdade, só vem a ser aprofundado com o filme já bastante avançado, pode ser considerado legítimo herdeiro de uma tradição documental então recente que remete direto a Flaherty (Nanook, o Esquimó), afastando-se desse na composição das imagens, demasiado épicas e empostadas como as da ficção soviética contemporânea, notadamente Eisenstein, e negando qualquer concessão à alegre trivialidade que por vezes acompanha igualmente a rotina do esquimó de Flaherty. Aliás, a ausência do humor é uma característica notável, mesmo em se tratando de uma comunidade marcadamente tradicional. A resposta para esta lacuna, assim como seu distanciamento marcado da proposta de Flaherty somente assoma ao final, quando escancaradamente o narrador – através das cartelas, pois se trata de um filme mudo, mas igualmente das imagens retumbantes de corpos musculosos – contrapõe, de forma decepcionantemente maniqueísta e fácil, tradição e religião de um lado e o plano quinquenal do governo soviético do outro. Sua primeira cartela reproduz uma frase de Lênin: “A União Soviética é um país tão grande e diverso que todo tipo de vida social e econômica pode ser encontrada nela”. Algo que o próprio filme procura ir contra, na tentativa de uma assimilação aos valores modernos que combatem justamente uma das raízes dessa diversidade cultural, que é a religião, e o obscurantismo que provoca. Assim, a assertiva que o filme se propõe é o de observar uma cultura eminentemente em desfacelamento após a chegada do “progresso” efetuado pela construção de uma estrada de 150 km, sendo que apenas um terço havia se concretizado até a finalização do filme. É curioso, no entanto, que o filme mantenha todo o seu interesse, das torres construídas pelo povo de Svaetia para se contrapor aos barões à imensidão dessas colinas isoladas em que a figura humana (tal como em Flaherty) surge em proporções diminutas passando pela inesperada nevasca de verão que arruína parcialmente a colheita na cola de uma prática cultural de subsistência, que se verá evidentemente transformada com sua ligação ao comércio através da estrada. Ou seja, após extrair todo o seu teor épico da rudimentar dependência da “cultura da pedra”, que ocupa boa parte do filme e vai do telhado das casas às rústicas camas nas quais se deitam e de costumes típicos de uma sociedade patriarcal, em que a mulher é avassaladoramente dominada – uma mulher grávida é expulsa de casa pois vai parir justamente no momento de um enterro – chega-se a um final em que o triunfalismo do movimento de adesão ao plano econômico do governo soviético surge de forma quase tão deus ex-machina quanto os inconvincentes finais felizes hollywoodianos para justamente negar tudo o que havia servido de matéria-prima para o documentário. Se o final de certo modo, mesmo que involuntariamente,  reproduza o que de fato deve ter sido o tremendo choque cultural de uma série de invectivas como que caídas do céu que surgem diante da comunidade, isso mais no plano da compreensão das imagens que propriamente de qualquer esboço de reação de seus habitantes, inexistente no filme (ao contrário de um filme como A Linha Geral, de Eisenstein, onde esta tensão é apresentada), mais difícil fica compreender o paradoxo de se optar, através de composições visuais incrivelmente belas, por essa estetização de uma miséria que vem a ser posteriormente condenada como produto da alienação religiosa. Seria algo como uma postura próxima do folclorismo, no registro de práticas tradicionais, mas menos para exalta-las ou ao menos compreendê-las, que negativa-las.  Destaque para planos que apresentam costumes locais que devem ter soado um tanto “exóticos” aos olhos, inclusive, do povo moscovita, como o das “lágrimas de leite” derramadas do seio da mulher sobre a terra onde se encontra enterrado seu filho. Ou ainda para a mulher que espera com uma criança de colo o retorno dos homens que foram em busca de sal, disposta de forma muito semelhante aos “heróis trágico-populares” eisenstenianos, inspiração essa também presente nos expressivos rostos marcados pela dura vida que são captados de baixo para cima, dando-lhes uma dignidade insuspeita. Já as imagens aceleradas de nuvens no céu ou como sombras sobre a terra, assim como a sobreposição alucinada de imagens são mais evocativas de Vertov, assim como um certo teor panteísta-pastoral, bastante marcado na imagem, mesmo que negativado, em última instância, pelos realizadores, pode ser aproximado de Dovjenko. No momento em que se destaca mais especificamente a questão da falta de sal, observa-se desde um homem urinando e as vacas disputando o lugar para buscarem algo de sal no líquido até o cachorro que lambe o sangue do bebê recém-nascido com o mesmo intuito.  Trata-se de algo universal, carência que une homens e animais.  Aparentemente sua versão original é 6 minutos mais longa. Restaurado em 1997, quando foi adicionada igualmente uma trilha sonora bastante propícia ao seu tom. Kalatozov, de forma de longe menos inspirada, é hoje mais lembrado como o cineasta da super-produção Sou Cuba (1964), onde a transposição de seu virtuosismo estilístico e ditames próximos de um Realismo Socialista aqui igualmente presentes parece não ter se aclimatado bem nos trópicos. Sakhkinmretsvi. 49 minutos.


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