Filme do Dia: Memórias de um Estrangulador de Loiras (1971), Júlio Bressane

 


Memórias de um Estrangulador de Loiras (Brasil, 1971). Direção e Rot. Original Júlio Bressane. Fotografia Laurie Gane. Montagem Júlio Bressane & Gilberto Macedo. Com Guará Rodrigues.

Bressane parece dar um passo atrás, louvável, diga-se de passagem, em relação à radicalidade de desconstrução narrativa de seu filme anterior, Cuidado Madame, por mais que se possa pensar o oposto.  E se busca algo minimamente sombrio, embora à luz do dia (porque provavelmente, como faz questão de ressaltar, através de uma cartela jocosa, o parente próximo Nosferato no Brasil, não se teria equipamento para filmagem noturna), para a primeira cena de estrangulamento, em meio a umas colunas dóricas de edificações semelhantes e próximas umas das outras, observadas a certa distância. Bressane não se importa em não cortar a imagem no qual a suposta vítima tenta observar se a tomada já havia acabado, após a saída do assassino – o mesmo se dará bem mais adiante com uma das vítimas em um parque, que se recompõe antes do final da tomada. O segundo crime se dá em um ajuntamento de moradias com farto calçamento ao redor. Neste observamos mais nitidamente o assassino, vestido um pouco à moda da época, por as mãos sobre o pescoço da vítima, ainda que um carro estacionado sirva como escudo para que a cena possa ser observada com mais detalhe. Segue-se a imagem de nádegas, aparentemente femininas, a balouçarem em certa frequência rítmica. Músicas suscitando momentos de ação em filmes de gênero são acionadas. Assim como breves planos do anterior Cuidado, Madame. E o mesmo se dará bem mais adiante com um still de Cara a Cara, no qual Milton Gonçalves lê um jornal cuja manchete de destaque é “CONDENADA À MORTE”. Ou ainda o apartamento do filme imediatamente anterior.  Há planos que se busca certo atrativo estético, meio que ausentes do filme anterior, como o já referido primeiro assassinato ou uma imagem de espelho a flagrar uma conversa do assassino a uma próxima vítima potencial. O espelho se encontra em meio a um mato, provocando um plano um tanto “exótico”, que não poderia ser parente tão distante da cena do crime observado pelos óculos da própria vítima em Pacto Sinistro. Também testemunha o que parece ser o início do terceiro crime. Ou ainda no uso das cores – sim, porque se trata de um filme em cores, ao contrário do primeiro e tirando partido do recurso mais que o segundo. A quarta vítima, do qual observamos com bem mais visibilidade toda a ação, é estrangulada em um quarto estreito, com uma cama, e a calça vermelha do estrangulador combinando com a blusa da vítima, e a cortina mal entrevista no plano. Outro destes planos bastante excêntricos apresenta uma radical câmera baixa da imagem do estrangulador, observado do joelho para cima, em seu sobretudo pesado, quase como uma imagem de gesso em movimento – um padre Cícero! Ouve-se o ruído de pássaros na banda sonora. E, bem mais adiante, sobre o canto dos sapos, loiras se encontram dispostas em diferentes bancos (e profundidades) em relação a lente da câmera, como apenas a esperarem pelo estrangulador. Que não tarda a surgir. E a mata-las em profundidade (a primeira quase imperceptível, um borrão distante; a última observada desde o início com maior proximidade, mal sabendo o que lhe aguarda, embora o espectador sim). E que todo ocorra em um pequeno oásis de um trecho relativamente movimentado de Londres, onde ao longe (porém, nem tanto) se observa o movimento de pessoas e veículos, incluindo os típicos ônibus londrinos, apenas reforça a sua tese; afinal se trata de uma produção sem recursos para isolar a área de filmagem, teoricamente qualquer pessoa podendo ver as cenas. O caráter de repetição, aqui em uma mesma imagem, poderia apontar para a massificação e anonimato no mundo moderno. Assim como uma individualismo que pode representar a morte – já que observamos a vítima ser morta a uma certa distância ao fundo e pela primeira vez em um ambiente no qual se divisam outras pessoas – já que a moça do banco adiante continua impávida e não se dá conta do crime às suas costas;  e a música dos sapos não parece se encontrar à toa aqui, já que estabelece um sutil elo sonoro com o momento traumático da infância, quase a apontar resquícios liquidificados de uma explicação psicanalítica na linha de vários filmes hollywoodianos dos anos 40 e, mais uma vez, de Hitchcock. Há outras aproximações com o cinema clássico. Se Scarface  tinha o assovio e a moeda jogada na própria mão, e Michel Poiccard, parente mais próximo do personagem aqui observado, desliza a ponta do polegar próximo ao lábio superior, o protagonista aqui cofia as pontas do bigode, tal como Hercule Poirot.  Como que em um crescendo, a quinta vítima, morta em meio ao jardim de  uma casa em ruínas, torna-se a encenação mais realista de um assassinato. Seguida pela prosaica imagem do estrangulador lendo uma revista  sentado em um vaso sanitário e completamente nu. Da sexta apenas se observa o estertor final nas mãos do maníaco, que desce a escada de incêndio em caracol em outra imagem atrativa aos olhos. A sétima é abordada sem protocolo ou conversa. Ela se encontra em um banco em meio a um jardim, e seu cachorro observa complacente sua morte. A oitava conversava com ele ao lado de uma árvore. A nona poucos metros adiante. Da nona observamos apenas as botas de cano alto, inicialmente paradas, depois se debatendo. A décima chega a tocar na barba do assassino. A seguinte é morta em meio a outras. Da décima primeira à terceira as mortes ocorrem em sequencia numa distância de poucos metros, e numa área movimentada da cidade. A décima quarta numa estufa de plantas. A seguinte próximo a um conjunto habitacional. A décima sexta é morta em um pátio e se sucede a mais hilária das mortes, pois o assassino chama uma vizinha para lhe mostrar o cadáver e mal a mulher se escandaliza com o que vê, também é morta. E uma outra ainda desce uma escada. A décima nona é morta por entre cortinas cor de sangue.  Duas garotas  são convidadas a trocarem carícias diante dos olhos do protagonista. Uma é morta em um local entre paredes,  mas longe de nossos olhos – ouvimos apenas os guinchos de um elefante.  Mais quatro são mortas em situação bastante similar a anterior, em uma região de parque. Ao som, dessa vez, de um jazz antigo. Que todas sejam mulheres e louras é uma sorte grande para o maníaco. Após três mulheres com seu perfil se achegarem ao banco que estava e o outro que lhe é colado, resta ao homem abandonar o local para não cair na tentação de iniciar um crime tão próximo de outras mulheres. E ir para casa, cozinhar seu rango de cuecas ao som de um rock (ele também o ouvirá?).  A ausência do sangue habitual a jorrar caudaloso deve estar associado a todos os crimes serem encenados em locais abertos. Aqui, este só pode ser revivido através do recurso à memória, e o uso dilatado de um plano icônico, de A Família do Barulho, no qual após bastante tempo – mais parecendo se assemelhar a um screen test de Warhol – Helena Ignez verte sangue pela boca.  A determinado momento o assassino escreve, ‘we are what civilization calls inhuman’. Resta saber o que este “we” significa. Na diegese, se assim se pode denominar, provavelmente o assassino se referindo a ele e outros afins. Mas Bressane não poderia estar se referindo aos brasileiros em Londres? E o filme não parece sugerir a própria civilização como desumana? Há momentos nos quais o criminoso parece bastante atormentado ou arrependido, característica não observada em nenhum dos personagens de Bressane anteriormenter. Além de rodar um objeto com os dedos (um terço?). A narrativa finda com um assassino já idoso, com pose de um senhor digno, a escrever suas memórias.  A câmera fixa e o corte seco são o padrão. Será proposital ou uma coincidência Rodrigues se assemelhar, por vezes, ao vilão recorrente do cinema brasileiro, José Lewgoy? Sua banda sonora é bem mais trabalhada que a do filme anterior, havendo ocasionais ruídos de animais de zoo ou circo, gritos desesperados em meio a árias de ópera – aparentemente uma paixão do criminoso. |Belair. 70 minutos.


 

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