Filme do Dia: Além das Palavras (2016), Terence Davies

 


 Além das Palavras (A Quiet Passion, Reino Unido/Bélgica, 2016). Direção e Rot.Original: Terence Davies. Fotografia: Florian Hoffmeister. Montagem: Pia Di Ciaula. Dir. de arte: Merijn Sep. Cenografia: Ilse Willocx. Figurinos: Catherine Marchand. Com: Cynthia Nixon, Jennifer Ehle, Duncan Duff, Keith Carradine, Johdi May, Joanna Bacon, Catherine Bailey, Emma Bell, Noémie Schellens.

Emily (Bell) se torna uma jovem relativamente arredia às convenções sociais, chegando a incomodar mesmo ao seu tolerante pai (Carradine), sobretudo com relação a sua posição de afronta às autoridades eclesiásticas. Boa parte de suas reservas, devem-se ao fato de não ter se dobrado as imposições da escola cristã que estudou e da qual a própria família Dickson viu que era melhor ela se afastar. Desde jovem, Emily pede licença ao pai para que possa escrever poesia à noite, quando todo o mundo parece em tranquilidade. Ela possui uma admiração irrestrita pela Srta. Buffam (Bailey), e por sua espirituosa língua afiada e postura nada convencional.  Quando mais velha Emily, assim como sua irmã mais meiga, ao qual nutre grande carinho, algo recíproco, Vinnie (Ehle), não se casam, o que é reservado somente ao irmão, Austin (Duff). O pai morre. Emily começa a ficar com a saúde debilitada e cada vez mais reclusa a residência familiar, muitas vezes não chegando sequer a descer para interagir com as poucas visitas que recebem. A mãe sofre um derrame e pouco tempo depois falece nos braços dela e de Vinnie. Não muito depois, Emily flagra o irmão em situação de intimidade com Mabel, mulher casada, escorraçando-a de casa. Algum tempo depois, a própria Emily sucumbe aos crescentes padecimentos físicos e psíquicos que vem sofrendo.

Davies mescla convenções do filme de época e biográfico com seu próprio método dramático um tanto ascético e pouco dado a concessões. Não resta dúvida sobre qual o peso na balança que o filme tende, inclusive aproximando-se talvez mais que qualquer outro, de seus curtas iniciais de carreira (conhecidos como A Trilogia de Terence Davies) em seu retrato de uma artista que não conheceu o amor, e cuja fonte de inspiração parece advir justamente dessa ausência, numa espécie de aproximação com características biográficas talvez nada distantes do próprio Davies, a se confiar em suas entrevistas e na trilogia acima referida. Como filme de época, passa ao largo de grandes cenários ou valores de produção como um todo – e o fato da história, inclusive, se dar no período da Guerra de Secessão, e ocorrer no Sul, o que pode inevitavelmente sugerir comparações com algo diametralmente oposto como ...E O Vento Levou. Em nenhum momento o filme desliza para o voyeurismo ou ênfase com relação aos objetos de cena e cenários de época, como a maior parte dos que se detiveram em adaptações de obras do período,  incluindo grandes nomes como Visconti. E quando uma panorâmica se escoa sem pressa pela sala, atravessando todos os objetos da mesma, parece chamar atenção somente para o ambiente melancólico, soturno e solitário. E também ao se centrar em uma biografia tampouco o filme explora um viés espetacular de Dickson, buscando – e conseguindo, em sua maior parte – edficar um denso perfil psicológico de sua biografada, ao mesmo tempo visceralmente distante do papel reservado aos gêneros então, afirmando a determinado momento que jamais conseguiria conciliar sua vida com a de um homem, senão se encontrasse em pé de igualdade com o mesmo, com tendências denegatórias em respeito ao pai e, posteriormente, da autoconsciência de sua própria amargura, elaborada de forma digna e nada trivial, à exceção talvez de alguns clichês que, mesmo longe de caricatos, destoam da própria severidade do estilo de seu realizador, espelhando a da artista que retrata, como são as considerações de afeto a irmã. O drama vivenciado, sem dúvida alguma, remete a uma família demasiado “incestuosa” na intensidade de seus laços, incapaz portanto de permitir uma relacão de afeto maior com qualquer outro que não seja pertencente a ela, algo que Dickson também salienta em mais de um momento. Como na trilogia que iniciou sua relativamente escassa filmografia (12 títulos em mais de 40 anos, sendo um deles uma compilação de seus três curtas, e somente 8 longas), há uivos e estertetores de dor, ganhando o corpo físico uma face privilegiada na expressão da angústia existencial – do menos aparentemente angustiado,  o pai, por exemplo, não se observa qualquer padecimento e, como numa autoreferência, o filme traz uma cena muito próxima de Children, o primeiro e melhor curta da trilogia, com a protagonista observando do alto de uma janela envidraçada o ferétro do pai se afastar, com um tema musical cantado similar senão o mesmo do curta. E,igualmente, como nos curtas de início de carreira, com a religião como uma chave de explicação possível para a impossibilidade de se vivenciar sequer a sexualidade, e não apenas uma sexualidade plena como naqueles.  Soturno em sua iluminação, como se houvesse sido iluminado a luz das velas presentes em cena, tal como o Barry Lyndon, de Kubrick ou o uso da iluminação natural de um Malick. Em relação a obra da própria Dickson, vários de seus poemas são ouvidos na banda sonora ao longo de todo o filme e ao final, de forma comovente, sua imagem surge para substituir a das atrizes que a haviam representado. Como boa parte de sua obra, sobretudo a inicial, não existem grandes respiros em meio a uma situação crescentemente triste e carregada de pulsão de morte de forma talvez um pouco demasiado excessiva, mas igualmente um testemunho da recusa de concessões ou facilidades por parte de seu realizador. Destaque para a interpretação mais que inspirada de Fox, curiosamente mais conhecida até então como uma das personagens da série de tv Sex in the City. E também para as interpretações masculinas bem menos densas e mais esquemáticas, como as do pai e do irmão.  Hurricane Films/PotemKino/Weather Vane Prod. 125 minutos.

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Filme do Dia: Der Traum des Bildhauers (1907), Johann Schwarzer

Filme do Dia: El Despojo (1960), Antonio Reynoso