Filme do Dia: No Intenso Agora (2017), João Moreira Salles


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No Intenso Agora (Brasil, 2017). Direção e Rot. Original: João Moreira Salles. Música: Rodrigo Leão. Montagem: Eduardo Escorel & Lais Lifschitz.

Salles efetua uma leitura pessoal das imagens vinculadas ao maio de 68 francês a partir de fontes iconográficas do evento, assim como de balizas que possuem paralelos temporais (e também um valor afetivo no caso da recorrente imagem-punctum da mãe) como são as imagens domésticas de uma viagem à China vivida pela mãe, da Primavera de Praga e da morte do estudante Edson Luís no Brasil em 1968. No caso do último, trata-se de um bloco do documentário que avalia como foram tratadas vítimas dos eventos sociais na França, Tchecoslováquia e Brasil. Como Santiago, seu filme anterior, de dez anos antes, é um ensaio que se beneficia da passagem do tempo para efetivar uma reflexão sobre imagens produzidas em um momento outro – no caso de seu filme prévio, uma década de distância, aqui meio século, e igualmente com uma voz over propiciada pelo próprio realizador. À diferença aqui reside em que não se tratam evidentemente de imagens efetivadas pelo próprio documentarista. Enquanto algumas das melhores reflexões destacam o que, como no outro filme, já era um elemento presente, ou seja, que não se sabe muitas vezes o que se filma – como na imagem de um flagrante dos primeiros passos de uma garota no Brasil em que Salles hoje observa, sobretudo, o caráter de classe e racial, com a babá negra ficando em segundo plano e se confundindo praticamente com os transeuntes, enquanto a garota recebe toda a atenção de quem filma, noutros se apela para algo ainda mais próximo do lugar-comum, como os comentários sobre a felicidade extremada de todos os que integravam as jornadas de maio de 68, com grande destaque dado a Cohn-Bendit, algo que retorna com insistência na bela imagem final, já anteriormente observada em movimento, e que permanece como still, de uma moça que atende a ligação de uma mãe preocupada com a ausência do filho há uma semana (extraída de Noites Longas, Manhãs Breves). Seu sorriso expressando toda a potência de se descobrir possível se viver de forma intensa. Buscando se afastar da mistificação, no entanto, Salles não deixa de observar as conhecidas tensões existentes entre as lideranças estudantis e  as operárias, demonstrando todo o hiato que era a vivência desses dois grupos – e com as últimas não deixando de frisar que os estudantes seriam seus futuros patrões ou ainda o momento, antes do levante findar, que Cohn-Bendit aceita a proposta do semanário Paris Match de lhe oferecer um carro para abandonar Paris por Berlim. E ainda a formulação de um dos slogans mais célebres do movimento, o de haver a praia sobre as calçadas de Paris – devidamente arrancadas durante os protestos – ter sido formulada por dois publicitários após uma longa noite de brainstorm e não um rompante espontâneo do espírito libertário de alguma de suas lideranças. O intenso agora que o título se refere é o dos momentos de exceção à vida cotidiana, descrito quase didaticamente por um operário francês a falar que 65 e 66 não serão anos que futuramente serão recordados com a intensidade dos que participaram da greve de vários meses em 67 e que encontra paralelo no comentário da mãe do realizador sobre o que surpreende ser sempre algo mais vibrante, provocando uma suspensão sobre as suas próprias certezas – algo que o choque com um mundo bastante diverso do que ela própria acreditava propiciava; distância que, no entanto, é sentida de forma segura quando se trata de uma convidada da República Popular da China e que, reage de forma muito diversa quando esse choque se dá com algum risco a si própria, fugindo com a família após o dia mais violento do Maio, 24; contraposição que bem poderia fazer paralelo com as imagens tchecas que contrapõem o registro consentido da manifestação em honra do estudante que havia imolado o seu corpo em relação aquelas que foram filmadas na surdina, por entre as cortinas do apartamento quando da invasão soviética e o fim da Primavera de Praga. Recorrendo às imagens de vários documentários produzidos por coletivos à época, Salles não deixa de frisar a apropriação política algo limitada ou pouco razoável em seu tom militante para com o contexto real a ser enfrentado, como é o caso da tensão entre sindicalistas e uma jovem operária completamente arrasada com o retorno ao trabalho explorador e pouco digno sem nada de mudança substancial. Com presença de ao menos três discursos do general De Gaulle, um deles apenas observado o áudio traduzido sobre fundo negro, já que proferido no rádio, como ocorre em outros momentos do filme, seguindo-se o discurso que provocaria a virada conservadora e a passeata dos 500 mil em Paris que sela o final do conturbado período. Em momentos algo disperso, mesmo para um documentário que é elaborado enquanto uma jornada pessoal pelos eventos de 68, o filme parece oscilar a todo momento entre uma reflexão sobre o evento histórico por aqueles que o integraram, como é o caso do comentário sobre as rebeliões estudantis norte-americanas terem sido muito mais radicais, enquanto os franceses ainda seguiam um modelo muito próximo aos anos 50 no corte dos cabelos e com a figura masculina e branca sempre em destaque, e a releitura pessoal do próprio Salles do que lhe chama atenção nessas imagens. Nesse quesito, sua leitura do enterro de Edison Luís, por exemplo, é tratada de forma bem distinta daquela presente no documentário Jango (1984), de Tendler, que faz uso de um apelo emocional bem mais evidente, com a versão instrumental de  Coração de Estudante de Milton Nascimento, e aqui justamente fazendo menção a ausência de choro em um evento que parece muito pouco vinculado ao próprio estudante morto que uma demonstração política a não ser por 17 segundos das imagens captadas por Escorel, montador do filme de Salles, reflexão interessante embora talvez não tão exata. Se aqui também existe a presença de uma canção portuguesa, seu teor de potencial pathos é bem mais difuso e menos calculadamente direcionado.  Num dos poucos momentos em que assumidamente toma partido diante das imagens do material documental que faz uso, Salles afirma que Morrer aos 30 Anos (1982), de Romain Goupil, ser o seu predileto, justamente aquele que reforça a difícil lida com o mundo pós-utopia que gera suicídios como o descrito pelo próprio documentário em questão, assim como por um caso de outro estudante falecido aos 18 anos na Tchecoslováquia, inconformado com o conformismo rapidamente reinante na sociedade já referido. Curiosamente o próprio filme de Salles parece ressoar ainda mais após certo tempo de assistido, como as mudanças advindas do maio de 68 e não de todo desconsideradas pelo realizador – caso da entrevista de Cohn-Bendit em que, segundo Salles, observa-se uma postura inédita de um jovem de 23 anos a se confrontar com as vozes de autoridade ao vivo na TV e também suas icônicas fotos com dedo em riste contra o professor do alto da tribuna ou a ainda mais célebre encarando com olhar irônico e provocador um soldado. Noutras vezes soa mais como boutade como a foto de uma liderança a dormir ao lado do filósofo Jean-Paul Sartre, o mesmo que Cohn-Bendit se dissera extasiado ao ter sido entrevistado por, que parece traduzir uma complexidade que vai muito além do comentário de Salles, sinalizando não apenas para um desejo de se ir muito além das caducas convenções acadêmicas, e também da presença inarredável do corpo físico enquanto expressão, dos limites das próprias proposições dessa juventude diante do establishment, inclusive acadêmico. Dedicado a Eduardo Coutinho.  Videofilmes Prod. Artísticas. 127 minutos.

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