Filme do Dia: Ama-me ou Esquece-me (1955), Charles Vidor
Anos 1920. Ruth Etting
(Day), de uma corista anônima, é impulsionada em sua carreira pelo grosseiro
gangster Martin Snyder (Cagney), interessado em fazê-la sua mulher. Ruth é
constantemente advertida pelo pianista Johnny Alderman (Mitchell), dos riscos de
seu envolvimento com ele. Porém ela não apenas segue adiante com ele como
empresário, como se casa com o próprio. Embora a fama esteja ascendente, e
inclusive tenha recebido um convite para atuar em Hollywood, Etting vive uma
vida pessoal miserável com Snyder, sempre pronto a explodir com quem esteja por
perto. Durante a produção, ela reencontra Alderman e, quando percebe que seu
casamento não pode mais ser recuperado, decide se aproximar dele, provocando a
ira intempestiva de Snyder.
Se é verdade que Vidor
nunca se demonstrou um grande talento para a encenação – como desperdiçar a
chance incomum de incorporar a cena de filmagem em estúdio a
partir do próprio ponto de vista de quem a filma, para ficar em um exemplo
único – Day surpreende enormemente, seja quais forem suas limitações dramáticas,
quando se compara, por exemplo, seu papel com o de um musical que também lhe
foi marcante na carreira, Ardida comoPimenta, de apenas dois anos antes, mostrando, no mínimo, intenso
dinamismo. Em alguns momentos, até mesmo explorando a sensualidade e jogando
com o seu próprio corpo de forma não muito dissimilar da mais bem dotada e
assumido sex symbol Monroe. E o
filme, mesmo destituído de grandes achados visuais, e longe do esplendor visual
da produção anterior, surge como um dos mais tocantes retratos de armadilhas do
mundo pessoal, mais que do entretenimento, num momento em que Hollywood se
lançava com ardor a uma visão bem menos colorida que a apresentada nos musicais
a serem encenados dentro dos filmes – que o diga Nasce uma Estrela, de Cukor, lançado no ano anterior. Se é verdade
que o filme de Cukor apresenta, com maior radicalidade, a própria estrutura
perversa de um mundo de alegria no palco que se demonstra pavoroso por vezes antes mesmo do cair das
cortinas, e aqui se fica mais restrito ao drama pessoal, completamente
separado por parte da protagonista de seu profissionalismo, o retrato de macho
possessivo, que vê a mulher como mais uma de suas posses, vivida com brilho por
alguém que representou melhor que ninguém os rufiões da Chicago nos filmes de
gângster de duas décadas antes, e faz da vida dela, assim como da sua própria,
um inferno, continua tão contemporâneo quando de sua época. Cagney, de fato,
empresta ao seu personagem, todas as contradições que o tipo exige – rudeza,
chantagem emocional, influência, mas também subserviência, insegurança, baixa
auto-estima, provavelmente acentuada por ser coxo de um perna – que o
impulsionam para além do excessivo modelo de mau caráter que lhe é imposto como
quase uma regra da época. Day, por sua vez, consegue um equilíbrio que evita o
lacrimogêneo desnecessário, traduzindo na melancolia serena que canta suas
canções muito mais que nas lágrimas que lhe são arrancadas por um marido que
sua própria estrutura psicológica assumiu como seu, e a quem se dispõe, em nome
de sua carreira, até muito tempo depois, quando é esbofeteada na frente de
todos os funcionários de um novo restaurante que o marido pretende erguer, em
mais um de seus delírios de confusa
auto-afirmação. Louvável em sua recusa de um final xaroposo, antes
salientando não apenas a generosidade de Etting, que resolve fazer uma
apresentação para tirar da bancarrota o marido de quem pediu divórcio, como
também implicitamente um ajuste de contas em relação a ele sempre lhe passar na
cara que o sucesso dela era devido a ele. Reflexos da relação de ambos podem
ser sentidos, certamente, em um musical que aborda período – e relação abusiva
similar – de Scorsese (New York, New York)
duas décadas após. Se Day empresta uma dignidade a seu personagem, que foi
exigência da atriz, temerosa de ter sua imagem associada à vulgaridade, sua
personificação se torna mais afim com a agenda de empoderamento feminino do
século XXI, sendo que sua escolha entre os sentimentos e a carreira tampouco
soa estranha em tempos que o assédio se tornou assunto de proa na própria
indústria do entretenimento. Último filme que Cagney interpreta um gangster e
considerado por ele um dos melhores de sua carreira e a melhor interpretação
nas telas segundo a própria Day. Wilder revisitaria o universo dos anos 1920 e
do gangsterismo, ainda que sob a chave cômica, em Quanto Mais Quente Melhor (1958). MGM. 122 minutos.
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