Filme do Dia: Aquarius (2016), Kléber Mendonça Filho
Aquarius (Brasil, 2016). Direção e
Rot. Original: Kléber Mendonça Filho. Fotografia: Pedro Sotero & Fabrício
Tadeu. Montagem: Eduardo Serrano. Dir.de arte: Juliano Dornelles & Thales
Junqueira. Figurinos: Rita Azevedo. Com: Sônia Braga, Humberto Carrão, Maeve
Jinkings, Barbara Colen, Carla Ribas, Irandhir Santos, Fernando Teixeira, Pedro
Queiroz, Thaia Perez.
1980.
Clara (Colen) consegue vencer um câncer e recebe um tributo de seu marido no
aniversário de 70 anos de sua Tia Lucia
(Perez). 2015. Clara (Braga) vive
sozinha em um prédio no qual todos os outros moradores já saíram, boa parte
deles por conta da proposta da Bomfim Engenharia, cujo neto de seu proprietário
Geraldo (Teixeira), Diego (Carrão) é quem comanda a operação para tentar fazer
com que Clara também venda seu apartamento.
Tal
como em seu longa de estreia, O Som ao
Redor, existe pontos em comum tanto em termos de estruturação dramática
quanto da proposta central do filme. Ou seja, a partir de pequenos
micro-eventos se trabalha na chave alegórica, fazendo uso do espaço de moradia –
que já havia sido tema de filmes como Tudo
Bem (1978), de Arnaldo Jabor, Sábado
(1995), de Ugo Giorgetti ou Redentor
(2004), de Cláudio Torres - como metáfora para uma relação de forças
extremamente desigual que impera na sociedade brasileira. Igualmente, como em
seu primeiro filme, sobretudo se se parte do recorte apresentado por seu trailer, episódios parecem acenar para
uma posterior dramatização no sentido de criarem ganchos para um eventual
desdobramento dramático afinado com filmes de gênero, como as cenas de sexo grupal ou o salva-vidas
a indagar de Clara se ela está o assediando ou mesmo a cena de arrombamento de
um apartamento, para não falar da dos jovens de periferia que se aproximam de
uma atividade grupal terapêutico-desportiva sendo realizada por um típico grupo
de classe média. E, de forma mais
discreta, um momento de representação de sonho é apresentado, embora essa
aproximação ambígua com os elementos dos filmes de gênero e a própria tensão
sejam melhor aproveitados em seu filme anterior. Numa das cenas mais fortes do
filme, a Clara de Braga demonstra ter sofrido uma mastectomia, ponto fulcral,
para além da idade, para que sua vida sexual seja praticamente inexistente. E o
filme aposta numa construção dual entre a carismática remanescente de um país
menos dependente do vil metal enquanto norte inclusive para as relações
afetivas e o extremo oposto, representado na figura cínica e odiosa vivida por
Carrão, repetindo igualmente uma estratégia de seu filme anterior, ainda que lá menos polarizada exatamente entre personagens individuais. Faz parte do
primeiro o mundo da memória, representado por fotos antigas, vinis (que trazem
uma história de vida junto a eles, como é o caso exemplar do disco de Yoko Ono
e John Lennon Double Fantasy citado
por Clara em uma entrevista, numa lógica da circularidade física impossível de
ser reproduzida no universo digital) e uma força moral algo incontestada,
inclusive por seus rivais (numa aproximação possível, inclusive, com a
presidenta Dilma Rousseff, algo mais acentuado ainda com o longo processo de impeachment que ocorreu após
a produção do filme). Do outro a esterilidade da grana que “destrói coisas
belas”. Como toda alegoria que se preze,
o filme não investe em meios tons ou arrisca apresentar de forma menos
positivada ou mais nuançada o setor social ao qual o próprio realizador se
identifica, algo que teria sido interessante sem necessariamente ter que
recorrer ao cinismo no estilo de um Bianchi (Cronicamente Inviável). E talvez não ter sido tão radical na
quixotesca figura de Clara, fazendo com que ao menos uns poucos moradores
também continuassem morando no prédio tornasse tudo mais verossímil, algo que
igualmente seria contraproducente em termos da alegoria buscada. Talvez o que
falte para que a consumação do processo de identificação se dê de forma mais
satisfatória seja a fragilidade sobre o qual é construída essa personagem,
mesmo com toda a grandeza que lhe é emprestada por Sônia Braga, na atuação
talvez mais memorável de sua carreira. E
isso talvez se dê pela própria dificuldade do realizador na elaboração de
personagens individuais de maior complexidade psicológica – algo ausente de seu
primeiro longa, de protagonismo diluído. Fazendo um uso bem maior de canções
que O Som ao Redor, se seria leviano
afirmar que ocorre uma dependência das mesmas para emprestar uma carga
dramática, tampouco seu excesso é benéfico ao filme, apontando para traços de
certa condescendência que se tornam mais acentuados que os referentes a sua
própria extensa metragem, pouco sentida dentro da dinâmica do filme. Ao contrário de boa parte da produção
pernambucana-nacional recente, em que uma música “brega” surge em determinado
momento clímax do filme, Mendonça já inicia com uma canção que foi um de seus
maiores acertos, Hoje, de Taiguara, podendo ser identificada
como a “cara do filme”, inclusive pela
forte resistência de seu compositor à ditadura militar, retornando ao final
para fechar o ciclo, que se se resolve em termos musicais, fica algo a dever na
própria opção de desfecho, catártica e em aberto ao mesmo tempo como havia sido
a de seu filme anterior, mas nem de longe tão interessante. Se existe uma relação evidente de paralelismo entre a tia e Clara, outra vem a
ser ressaltada entre Clara e seu sobrinho, com quem tem mais proximidade que os
filhos; à exceção parcial desse sobrinho, o filme tem uma visão bem pouco
otimista da juventude, observada como alienada e meritória de paciência como é
o caso da jornalista que entrevista Clara, em postura pouco generosa. Dentre as referências geracionais vinculadas não somente à personagem como a atriz principal, está evidentemente o título do filme, uma referência a cultura hippie e a utópica Era de Aquarius então sonhada (sendo que Braga, como a letra de Caetano lembra, trabalhou na versão teatral brasileira de Hair). Destaque para coadjuvantes que vivenciam papéis similares aos do filme prévio, como Irandhir Santos ou o ator (Yuri Holanda) que interpreta o jovem da elite que trafica drogas aqui numa ponta, que antes interpretara Dinho, o primo playboy e ladrão. CinemaScópio
Prod./SBS Productions/Videofilmes/Globo Filmes para Vitrine Filmes. 142
minutos.
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