Filme do Dia: O Que a Carne Herda (1949), Elia Kazan
O Que a Carne Herda (Pinky, EUA, 1949). Direção: Elia Kazan. Rot. Adaptado: Philip Dunne
& Dudley Nichols, baseado no romance de Cid Ricketts Sumner. Fotografia:
Joseph MacDonald. Música: Alfred Newman. Montagem:
Harmon Jones. Dir. de arte: J. Russell Spencer & Lyle R. Wheeler.
Cenografia: Thomas Little & Walter M. Scott. Figurinos: Charles Le Maire.
Com: Jeanne Crain, Ethel Barrymore, Ethel Waters, William Lundigan, Basil
Ruysdael, Kenny Washington, Nina Mae McKinney, Griff Barnett.
Pinky (Crain) é uma
jovem de sangue negro e pele branca que decide voltar ao Sul, após ter se
formado como enfermeira, às custas do esforço da pobre lavadeira sua avó
(Waters). Noiva do médico de carreira promissora em Boston, Dr. Thomas Adams
(Lundigan), Pinky não mais se adapta a cruel realidade vivida pelos negros,
sendo vítima de uma tentativa de estupro. Quando decide ir embora, sua avó a
faz mudar de idéia e cuidar da velha solitária Miss Em (Barrymore) que, apesar
de toda sua arrogância e de ser branca, cuidara dela quando ela estivera muito
doente recentemente. Pinky passa a cuidar de Miss Em e aos poucos se torna
amiga da velha senhora, sofrendo muito com sua morte. Após a execução do
testamento, Pinky é aquinhoada com a casa onde morara Miss Em, decisão que não
é aceita por sua gananciosa prima, Melba Wooley (Varden). Porém, a decisão
judicial é favorável à Pinky, que dispensa o casamento e uma nova vida como
“branca” com Thomas, para levar a frente o projeto aludido por Miss Em no
testamento, montando uma escola-creche para seus “irmãos de sangue”.
Realizado logo após o
grande sucesso comercial proporcionado por A
Luz é para Todos (1947), onde explorava a discriminação aos judeus na sociedade
americana, Kazan continua aqui sua empreitada liberal sem maiores sutilezas.
Partindo do melodrama como instrumento para traçar um painel da sociedade
americana que pretende como válido para o futuro, a partir de um maior
igualitarismo para os negros, a trama obviamente se choca com limitações que
transcendem o pretenso desejo por uma nação mais justa. Embora o filme pareça
endossar a ideia da avó negra sobre os valores da amizade como mais importantes
que as diferenças de cor e a auto-afirmação arrogante da protagonista, a
própria tessitura da ficção desconstrói tal pretensão. Antes de tudo, pelo
filme expressar a construção da raça mais em termos genéticos que enquanto
construção social, como deixa entrever o título brasileiro, bastante representativo
das delimitações étnicas nos Estados Unidos. Assim, Pinky sentiu o clamor de
seu próprio “sangue” pedindo que não renegasse suas origens e tentasse ser uma
caricatura do que “essencialmente” não é. Depois, pelo fato de que Pinky, a
representante dessa negritude, ser branca, podendo assim se tornar palatável
para o público médio americano (como a Escrava
Isaura, em nossa literatura romântica). Por fim, e não menos importante,
continua-se na chave do segregacionismo racial, já que não se torna possível
haver uma união entre a auto-afirmação da “negritude” de Pink e a figura que o
noivo reconhece apenas enquanto Pat, a ficção de branca criada por ela própria.
Nesse sentido, até a diferença de nomes acentua se tratarem de duas
possibilidades de construção de identidade auto-excludentes. Na verdade, a
posição de Pinky demonstra o próprio paradoxo ideológico do filme, seguindo a
cartilha da avó ao aceitar cuidar da velha dama branca, porém recusando o
casamento com um branco que poderia, em última instância, ser a matriz para se
pensar uma América “miscigenada”. No último caso, o orgulho racial foi mais
forte que a situação de trabalhar gratuitamente para a branca que lhe humilhara
na infância, o que não deixa de ser grandemente sintomático da força que o tabu
do casamento miscigenado ainda evocava. Um dos elementos mais plenamente
melodramáticos na estrutura do filme é a trilha sonora assinada por Newman.
20th Century-Fox. 102 minutos.
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