Filme do Dia: O Carroceiro (1963), Ousmane Sembene
OCarroceiro (Boron Sarret,
Senegal, 1963). Direção e Rot. Original: Ousmane Sembene. Fotografia: Christian
Lacoste. Montagem: André Gaudier. Com: Ly Abdoulay, Albourah.
Um dia na vida de um carroceiro
(Abdoulay) que vive no subúrbio. Após suas orações e se despedir de sua mulher,
dá carona a várias pessoas que encontra pelo caminho. Nega-se a sequer
responder ao pedinte que lhe aborda quando descansa. Leva uma mulher grávida e
seu marido ao hospital. Escuta e se emociona com o canto de um griô. Leva um
homem com um recém-nascido morto para ser enterrado, mas o funcionário do
cemitério afirma ao homem que ele deve ter a documentação necessária e impede o
carroceiro de entrar. Enquanto o funcionário admoesta ainda ao homem, o
carroceiro parte. Ele faz uma pausa à beira-mar e quando volta a se aproximar
da carroça, depois de urinar, encontra um homem que lhe faz a insólita proposta
de leva-lo ao centro da cidade, região proibida aos carroceiros. Ele o leva, algo
contrariado, mas com a possibilidade de receber um bom dinheiro, que perdera ao
pagar o griô. Ao chegarem no centro, após determinado tempo, o carroceiro é
abordado por um policial, enquanto o homem que ele levava abandona o local sem
pagá-lo. Sob pressão do policial, o carroceiro, ao não ter dinheiro para pagar
a multa, cede sua própria carroça. Ele retorna triste ao bairro onde mora e
afirma para a mulher não ter trazido dinheiro nem a própria carroça. Duas
crianças buscam ajuda, mas a mulher afirma que não tem, deixa a filha com ele e
sai.
Esse que é tido como o primeiro filme
de África subsaariana (ainda que Sembene tenha realizado anteriormente um outro
curta, documental, L’Empire Sonhrai)
é também sua primeira obra-prima. Nessa versão restaurada sob os auspícios de
uma fundação que conta com Martin Scorsese, o filme conta com uma esplendorosa
fotografia em p&b. Sob o pretexto de apresentar o cotidiano de seu
protagonista – curiosamente, além dele, apenas o cavalo é creditado – o filme
nos deixa com fortes impressões do cotidiano de Dacar, nunca citada pelo nome,
mas observada em seu borburinho dos bairros populares, em tomadas que, a
exceção da bela panorâmica que nos introduz ao universo completamente distinto
do centro da cidade, tendem a se situar em registro fisicamente atrelado ao
carroceiro, por vezes mesmo buscando reproduzir o que seria próximo de sua
perspectiva visual. E também que se aproximam de forma lúdica e criativa de uma
realidade bastante sofrida, como é o caso do plano em que se observa as pontas
das pernas do carroceiro e suas chinelas dispostas surgindo da carroça
reproduzindo o que seria a perspectiva do pedinte, em um plano que mais parece
ter sido realizado por um cineasta de décadas após como Spike Lee; ou seja, a
utilização da bossa do cinema não apenas enquanto cacoete per si, mas como
tradução das relações sociais (e de poder) entre os grupos humanos. E, mais que isso, e sem precisar de qualquer
discurso falado exterior, o filme igualmente apresenta, através da
subjetividade de seu personagem, uma compreensão de sua própria exploração, ao
se referir aos homens letrados como o que fizera, em última instância, perder
sua carroça, demarcando uma apropriação conscientemente política do cinema que
será efetiva ao longo da filmografia do realizador. E o faz através de uma interessante apropriação
de suas próprias restrições técnicas, fazendo uso de uma dupla camada de
sonorização, em que os diálogos são reproduzidos em voz over, sem que se apague completamente a parca audição captada
em som direto, numa estratégia evocativa igualmente de um trabalho criativo a posteriori como que Jean Rouch havia
feito em suas produções do final da década anterior. E, igualmente,
reproduzindo o próprio fluxo de consciência do carroceiro, seu mau humor seja
com o pedinte ou com o rapaz que há seis meses se levanta todos os dias em
busca de emprego sem sucesso e ao qual
resolve não parar a carroça e fazer com que ele corra para subir nela. Ou ainda
ao reclamar não menos irritado, consigo próprio, sobre a mulher grávida deitar
sua cabeça sobre o seu ombro e não o do marido. Para além da perspectiva de seu
personagem, no entanto, o próprio filme apresenta outras que parecem estar além
de sua naturalização do espaço em que vive, através do uso engenhoso da música,
que de temas tradicionais nativos, subitamente se transforma em uma música
erudita barroca ao se adentrar no espaço completamente distinto do centro da
cidade, apresentando uma configuração de cidade colonial, relativamente
bucólica e aprazível, mas cuja fisionomia que lhe garante assim ser se encontra
associada a própria exclusão de figuras como a do carroceiro, com uma cena que
representa isso de forma praticamente didática – o plano de detalhe em que a
perna da autoridade policial segura a medalha deixada cair pelo carroceiro, e o
braço desse se encontra em riste, em um protesto mudo contra a própria
exploração. E quando esse retorna, com sensação de derrota, as proximidades de
onde mora, o tema tradicional volta a substituir a música erudita. Pouco
importa ao filme que se agregue ocasionalmente a sua imagem, a dos transeuntes
curiosos que se aproximam para observar a filmagem, não apenas nas cenas
filmadas nas ruas, como na próporia cena final do carroceiro em sua casa, tendo
em vista o ganho de expressividade espontânea na representação dos ambientes
filmados. Filmi Domirevi/Les Actualités Françaises. 20 minutos.
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