Filme do Dia: Dor e Glória (2019), Pedro Almodóvar
Dor e Glória (Dolor y Goria,
Espanha, 2019). Direção e Rot. Original: Pedro Almodóvar. fotografia: José Luis
Alcaine. Música: Alberto Iglesias. Montagem: Teresa Font. Dir. de arte: Antxón
Gómez & María Clara Notari. Figurinos: Paola Torres. Com: Antonio Banderas,
Penélope Cruz, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia, Cecilia Roth, Julieta
Serrano, Nora Navas, Asier Flores, César Vicente, Agustín Almodóvar, Raúl
Arévalo.
Salvador (Banderas) é um cineasta em crise
pessoal-profissional, após fazer uso crescente de heroína, apresentada a ele
por Alberto Crespo (Etxeandia), ator de um filme que já possui mais de 30 anos,
e que voltará a ser exibido pela Cinemateca, e com quem havia rompido e não
mais falado desde então. Salvador afirma não ter se recuperado da morte da mãe
(Serrano), há quatro anos e constantemente possui lembranças de sua infância
(Flores), quando havia se mudado com ela, Jacinta (Cruz) e o pai (Arévalo) para
uma casa construída no subterrâneo, e onde começa a ensinar ao jovem pintor
Eduardo (Vicente). Embora falte ao compromisso na cinemateca, e recuse em um
primeiro momento a entregar um de seus textos, O Vício, a Crespo, depois voluntariamente decide entregá-lo,
recusando-se a assiná-lo, por conta do conteúdo explicitamente autobiográfico e
por se referir a temas espinhosos, como o de seu próprio vício. Em uma das
apresentações teatrais, o personagem que havia inspirado um dos protagonistas do
monólogo, Federico (Sbaraglia), reconhece-se a si próprio e encontra-se com o
ator. Esse passa o contato de Salvador e os dois voltam a se encontram após
mais de três décadas.
Nesse seu ajuste de contas com o passado (que
também estivera no primeiro plano de Má
Educação) parece haver muita pouca glória e demasiada dor. De fato, ao
invés de glória se poderia mencionar a especularidade como se alçando a um
palco em que, curiosamente, o melodrama surge mais enquanto possibilidade, que
consecução - por sinal comentado pelo alter-ego do realizador, ator que
provavelmente também sofreu um afastamento do realizador por um bom período de
tempo, tal como Crespo. Com camadas e mais camadas de referências ao universo
pessoal do próprio realizador, inclusive sua cinefilia (imagens de Monroe em Torrentes de Paixão (1953) e de Natalie
Wood em Clamor do Sexo (1961) se
mesclam as indagações da arguta criança sobre se Elizabeth Taylor é irmã de
Robert Taylor, atores de seu álbum de figurinhas, e se ela também cose as meias
para ele, tal como a mãe faz para si. Trabalhando com expectativas de golpes
melodramáticos, que são consecutivamente desconstruídas ao longo da trama, o
filme ao máximo se permite uma virada de superação no vício de heroína e o
retorno ao trabalho, evidentemente encenando com os mesmos atores que
visualizáramos o seu passado (Cruz e o relativamente limitado ator-mirim
Flores, em uma referência especular mais convencional ao final). Pesam talvez
contra si a excessiva estilização com que as memórias são imageticamente
trabalhadas, mesmo descontada a referência metacinematíca final em visada
retrospectiva e o retorno ao passado como forma de tentar exorcizar fantasmas
afetivos, sexuais e profissionais. Se o primeiro e o terceiro parecem
encaminhados a partir do contato com seus diretamente envolvidos, ao segundo,
hoje remanescente apenas enquanto efígie do retrato pintado por Eduardo, cabe
tentar esgrimi-lo através da lente do próprio cinema, ainda que no próprio
filme de Almodóvar, é o que talvez seja dedicado menor tempo. E por falar em
tempo, lidar com material demasiado próximo de si, é sempre um enorme risco, e
a metragem excessiva dessa produção talvez seja um testemunho disso. E não falta a lida com um quarto eixo de
memória a lancinar espiritualmente Salvador, o enfrentamento com uma mãe de
postura ambígua diante dele próprio, vivida por uma das atrizes emblemáticas do
início da própria carreira do realizador (Maus Hábitos, Pepi, Lucy y Bon, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos). Desnecessário dizer que a matriz para
o modelo do cineasta em crise que se volta para sua própria subjetividade é
irremediavelmente 8 e 1/2 (1963), de
Fellini. Prêmio de ator para Banderas em Cannes. El Deseo para Universal
Pictures. 113 minutos.
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