Filme do Dia: O Espelho (1997), Jafar Panahi
O Espelho (Ayneh, Irã, 1997). Direção: Jafar
Panahi. Rot. Original: Jafar Panahi. Fotografia: Farzad Jadat. Montagem: Jafar
Panahi. Com: Mina Mohammad Khani, Kazem Mojdehi, Aida Mohammadkhani, Naser Omuni, M. Shirzad, T. Samadpour.
A garota Mina (Khani) espera
impacientemente para que sua mãe venha buscá-la na escola. Como essa não
aparece ela utiliza-se de diversos meios para encontra-la e, posteriormente,
retornar a casa, buscando ajuda de vários adultos, como uma servente da escola
e um amigo desta, que lhe deixa na parada de ônibus. No ônibus percebe sua mãe
na rua, e pede para descer. No entanto, o motorista para mais adiante, e ela
acaba perde novamente a mãe de vista. Volta a pegar o mesmo ônibus e percebe,
no final da linha, que se equivocara. O motorista disse que ela pegara no
sentido contrário. Quando volta a fazer o caminho, recebe instruções para não
olhar para a câmera e decide não mais participar da filmagem. Todos da equipe
técnica procuram entender o motivo de sua recusa. E como ela teima em não mais
filmar, a equipe decide segui-la, sem
que saiba, deixando com ela um microfone portátil no trajeto de volta à casa,
onde tem problemas semelhantes ao de sua personagem no filme. Já em casa, a equipe a visita, pretendendo
finalizar o filme com a explicação de Mina sobre o motivo de ter abandonado a
filmagem, porém essa permanece inaudível, já que o homem que a interroga põe a
mão sobre o microfone camuflado.
O
filme reune muitas das características comuns da cinematografia iraniana
recente ao seu lançamento. Da mesma forma que Através das Oliveiras (1994) de Kiarostami e Um Instante de Inocência, de Makhmalbaf, apresenta a tênue relação que existe entre a
realidade dos seus intérpretes e o papel que representam, relação essa que,
como nos outros filmes citados, explicita-se no momento da filmagem, gerando o
conflito – a garota acha ridículo a roupa e o gesso que utiliza, além do fato
de ser apresentada como cursando a primeira série primária, quando na realidade
não utiliza tais trajes, não está com o braço quebrado e já cursa a segunda
série. Igualmente reaparecem aqui as crianças como personagens principais e um
tema minimalista, que gira em torno de um ato do cotidiano – no caso, a
necessidade da protagonista de retornar para sua casa. Com um tempo diegético
que praticamente coincide com o tempo real – que tem como baliza o jogo entre
Irã e Coréia do Sul, nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 1998 - utiliza-se da pequena odisseia da tentativa de
retorno da garota para o lar para se aproximar de alguns temas contemporâneos
que inquietam a sociedade iraniana: o crescente individualismo – uma velha
senhora ralha com Mina, quando essa não cede o lugar para uma mulher grávida, e
a mesma senhora reclama da falta de atenção e desprezo que recebe da família
após tudo que fez pelos filhos; o despertar das mulheres para sua condição de
oprimidas – uma longa discussão entre um velho senhor taxista e uma mulher que
divide um táxi com Mina, assim como a condição secundária da mulher, ao entrar
apenas pela portas traseiras dos ônibus, que possuem espaços próprios para
ambos os sexos; e, indiretamente, a própria emergência do futebol como nova
paixão nacional, aliás, impulsionada definitivamente a partir do citado jogo
que o filme faz referência. Por outro lado, em termos de teoria
cinematográfica, o filme demonstra como visões parciais sobre uma estética que
seria, por excelência, fílmica, acabam
por não darem conta da infinidade de possibilidades que o meio suscita. Com
planos longos, e uma compressão espaço-temporal que justificaria uma
aproximação descritiva da realidade, onde o ocultamento do material técnico,
assim como da montagem, seriam aliados para a “autenticidade” do
apresentado, o filme se aproxima da tese
defendida por Bazin, na década de 50. No entanto, a partir do momento que sofre
uma radical guinada, em que se revela enquanto filme, deixa claro uma certa
confluência com as teorias da década seguinte, que pregavam a necessidade de
deixar o máximo possível evidente os instrumentos que propiciavam a captação e
transformação dessa mesma realidade, como a própria apresentação da câmera
cinematográfica e o restante equipamento técnico, etc. E deixa patente que a
proximidade de um modelo não invalida a presença de elementos do outro. No
primeiro momento do filme, em que ainda segue as convenções tradicionais de
representação dramática, existe a seqüência-chave que descreve a carona de Mina
na moto, num virtuoso, belo e longo – quase não é percebida sua extrema duração
devido ser quase todo preenchido pelo movimento da motocicleta – plano. Já no
segundo momento, é também a seqüência
que o caracteriza, a do desmascaramento do filme enquanto filme, a mais
interessante, partindo da contravenção da convenção de que os atores não devem
olhar para a câmera feita pela pequena atriz.
Porém, apesar de se distanciar do cinema defendido por Bazin ao
apresentar a estrutura narrativa como uma construção, o filme nem por isso
deixa de ser marcado por uma influência grandemente fenomenológica, em que o
próprio título refere-se a capacidade do cinema espelhar a própria realidade –
a Mina personagem não é tão distante, como percebemos, da Mina pessoa,
vivenciando as mesmas dificuldades de seu personagem. Essa noção de cinema como
espelhamento da realidade, torna-se problemática, a não ser que pensemos em um
nível mais poético que literal, já que toda realidade é construída a partir de
uma visão de mundo, onde entra em cena o papel, por exemplo, da ideologia, que
não chega a ser abordado pelo filme. Curiosamente, a partir do momento em que
se assume enquanto filme, elementos que antes haviam sido “banidos” pela poder
das convenções geralmente associadas ao filme de ficção, começam a irromper,
como quando a garota reencontra a velha senhora do ônibus em uma praça, e
pergunta se ela está participando também do filme ou ainda quando passageiros
pensam se tratar de um ônibus convencional e são advertidos pela equipe de
filmagem. Leopardo de Ouro em Locarno. Rooz Film. 80 minutos.
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