Filme do Dia: A Forma da Água (2017), Guillermo del Toro
A Forma da Água (The Shape of Water, EUA, 2017). Direção:
Guillermo del Toro. Rot. Original: Guillermo del Toro & Vanessa Taylor, a
partir do argumento de del Toro. Fotografia: Dan Laustsen. Música: Alexandre
Desplat. Montagem: Sidney Wolinsky. Dir. de arte: Paul D. Austerberry &
Nigel Churcher. Cenografia: Jeffrey A. Melvin & Shane Vieau. Figurinos:
Luis Sequeira. Com: Sally Hawkins, Michael Shannon, Richard Jenkins, Octavia
Spencer, Michael Stuhlbarg, Doug Jones, David Hewlett, Nick Searcy, Martin
Roach.
Em
um laboratório de alta segurança do governo americano, em 1962, a faxineira
muda Elisa Esposito começa a desenvolver uma interação com o homem anfíbio
(Jones), que foi capturado na América do Sul pelo bruto Richard Strickland
(Shannon), que quer se ver o quanto antes livre do “monstro” e sair do local
com sua família. Elisa tem como melhor amigo o ilustrador decadente e gay Giles
(Jenkins) e, no trabalho, é próxima de Zelda (Spencer). Os planos para fazerem
uma dissecação do corpo do homem anfíbio se aproximam. Quem também se encontra
contrário a ideia é o cientista Dr. Hoffstetler (Stuhlbarg), que descobre
acidentalmente uma cena de interação entre Elisa e a besta. Os russos também se
encontram interessados em estudar o animal morto e acreditam que Hoffstetler
lhes facilitará a vida. Elisa, cada vez mais envolvida com a criatura e
sabendo-a ameaçada de morte e torturada pelo insensível, arrogante e abusivo
Strickland, bola um plano de retira-lo do laboratório com ajuda de Giles e com
o precioso apoio de Hoffstetler. O plano por pouco é bem sucedido e a criatura
passa a maior parte do tempo na banheira de Elisa. Ela pretende devolve-lo ao
oceano dentro de alguns dias, quando a previsão é de chuva intensa. Enquanto
isso, pressionado por seu superior, o General Hoyt (Searcy), Strickland, que já
teve dois de seus dedos arrancados pela criatura e novamente implantados,
resolve encontrar as pistas de quem foi o autor da retirada do mesmo. Diante de
um Hoffstetler agonizante, ele arranca a autoria do “sequestro” e parte para a
casa de Zelda. O marido dessa, Brewster (Roach) afirma sobre ele se encontrar
no apartamento de Elisa, mas quando lá chega, Elisa já havia partido com Giles
devolver o homem anfíbio ao mar. Porém Strickland descobre no calendário de
Elisa o local e o dia do plano.
del
Toro consegue atacar em várias frentes, com inteligência, mas sem perder a
puerilidade dos contos – várias licenças poéticas são delegadas a se tratar de
uma fantasia – e todo um arcabouço capaz de dialogar com um vasto público.
Existe inúmeras referências tributárias a uma Hollywood clássica mas vista já
nas telinhas de tv (em diversos momentos do filme, em que surgem igualmente
vários filmes, dentre eles Uma Noite no Rio com Carmen Miranda, de quem já ouvíramos na banda sonora antes mesmo
das imagens, Chica Chica Boom Chic)
que nas telas panorâmicas dos cinemas – o cinema que funciona no andar debaixo
de Giles e Elisa vive às moscas. Nada melhor que a própria “confecção” do
“monstro” para servir como metáfora ao filme, voltado ao passado (e ao cinema
desse passado), com o design dele
sendo bastante evocativo das ficções baratas dos anos 1950 (e particularmente
de O Monstro da Lagoa Negra) mas
voltando-se igualmente para boa parte da agenda contemporânea, e alguns
badulaques técnicos demonstram uma atualização do mesmo monstro. É nessa
roupagem grandemente clássica, mas trabalhada muito fortemente sobre a ética-estética
do pastiche que o filme se desenrola, em um universo vintage que parece quase tão absurdamente irreal de estetizado
quanto a sua improvável figura de mulher sonhadora, em estilo próximo ao de
Jean-Pierre Jeunet, acrescido de doses de um cotidiano mecânico,
desinteressante e solitário. E na ressignificação dos gêneros clássicos cabe ao
musical um papel mais tipicamente epifânico que a ficção-científica, a partir
de uma rotina de consumo deles na TV por Giles que é tão frequente quanto as
tortas que guarda na geladeira. Se na era clássica a ficção se encontrava quase
invariavelmente associada a uma pauta conservadora vinculada à paranoia da
Guerra Fria, mesmo que de forma, como aqui, alegórica, agora ela surge, de
forma quase tão escrachadamente explícita, associando o eixo do bem às figuras
de uma muda, uma negra, um gay e um monstro. Do outro lado a reprodução do que seriam os valores de um homem hétero e
branco com voz de poder e também o único a apresentar sua voracidade sexual na
cama (e o filme a apresentar uma cena de sexo devidamente gráfica) – no outro
campo a fantasia impera, através das masturbações diárias de Elisa à banheira, tal
qual o protagonista de Beleza Americana, mesmo local na qual se saciará com a
criatura ou as projeções de um gay que afirma que deveria ter nascido antes ou
depois do tempo em que vive e que ao segurar na mão do balconista que sonha em
vivenciar algo, recebe como resposta um pedido para se retirar do recinto.
Nesse quesito, aliás, ao gay e sobretudo a negra vivida pela ótima Spencer, não
sobram nada além de uma coadjuvância eminentemente folclórica e tampouco nada
distante de exemplares do cinema clássico – um deles, por sinal, observado na
TV, apresenta um número de dança de Mr.
Bojangles e Shirley Temple. Na nova alegoria da ficção contemporânea ao
conservadorismo de Trump, a figura do anfíbio bem poderia servir como
representante dos estrangeiros no país. A própria relação entre Elisa e a besta
mescla um romantismo a la Romeu e Julieta com uma referência mais galhofa ao
sexo embutido do mesmo, que bem poderia servir igualmente como comentário aos
monstros da época na qual o filme é ambientado. Sua insistente trilha sonora é
mais um elemento a se juntar ao que há de excessivo no filme. Nesse movimento
de referências a granel não faltam mesmo uma a Godard, numa variação ao diálogo
da relação entre homens a se lavarem aplicado ao ato de urinar ou a Douglas Sirk – ao contrário da mulher e do mundo doméstico enquadrado na telinha da tv
que ganha de presente dos filhos em Tudo Que o Céu Permite, aqui se observa o homem, vinculado a vida pública e ao
trabalho, enquadrado na janela de seu cadillac recém-comprado e sua ânsia de
ser respeitado pelo que possui, e não “pelo
que de fato é” típica do que é observado como negativo pelo universo
melodramático com o qual o filme, inteligentemente, flerta. Leão de Ouro no
Festival de Veneza. Bull Prod./DDY/Fox Searchlight Pictures para Fox
Searchlight Pictures. 123 minutos.
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