Filme do Dia: Virgem Margarida (2012), Licínio Azevedo
Maputo, 1975. Grupo de prostitutas e outras mulheres que se
encontravam no ambiente de um clube noturno e arredores são arrastadas pelo
Exército e levadas a uma região deserta de floresta sem nenhuma explicação.
Dentre elas se encontra Suzana (Mário), mãe de dois filhos, que não tem ocasião
para se despedir dos mesmos e trabalha como cantora na boate. Rosa (Mugalela), a
mais atrevida e desbocada de todas e a tímida Margarida (Maculuva), que sempre
afirmara sua virgindade, e que estava pronta para se casar com um homem que só
vira duas vezes por acordo familiar. Sua virgindade é motivo de descrédito da
maior parte das outras. Elas vão ser levadas a um campo de trabalhos forçados
do Exército, exclusivamente feminino, e sob o comando da rígida Maria João
(Cimela). Os castigos incluem ficarem amarradas sob o sol, por conta de terem
escapado para um povoado próximo. Quando as cartas chegam, trazem más notícias
para Suzana, que fica sabendo da morte de um dos filhos e também para a
Comandante Maria João, cujo noivo se casou com outra mulher. Suzana,
inconformada e fraca por não se alimentar, foge assim mesmo. Dela as militares
somente trazem uma bota, tendo sido devorada por um leão. A presença do
Comandante Filisberto (Alex), para uma visita de inspeção atiça a imaginação de
todas. O seu objetivo se encontra dividido entre denunciar Filisberto, por ter
assediado Rosa ou salvar Margarida, que foi comprovada como virgem. Elas optam
pela segunda opção e com grande festa as companheiras se despedem de Margarida
que parte com Filisberto e outro soldado. Logo, no entanto, será estuprada na
estrada, fugindo e reencontrado as amigas, sendo amparada por elas. Em seu retorno,
todas pressionam Maria João para partirem mesmo sem ter ordem dos superiores e
essa finda por concordar.
Apresentando um retrato bastante crítico da política
autoritária da FRELIMO em seu dogmatismo socialista de instituição de uma Nova
Mulher, eivado de moralismo em relação aos códigos sexuais e regionais, o
filme, dirigido pelo realizador de carreira talvez mais regular no país, e
nascido no Brasil, é o primeiro longa ficcional após diversos documentários e
ficções de média e curta metragem. Diga-se o que se quiser sobre a obra e suas
fragilidades não poucas, como a sua irregularidade, iniciando interessante,
depois se tornando arrastado e depois voltando a criar dramaticidade pungente,
auxiliado por sua maravilhosamente comedida e simples trilha sonora à base de
acordes em violão, é consistente com a trajetória de Azevedo como cineasta (e
também escritor) em seu aporte de traduzir dores, alegrias e vicissitudes do
povo moçambicano, a partir de seus próprios relatos – o filme é baseado em
relatos orais. Distancia-se da postura eminentemente alegórica de um filme como
Terra Sonâmbula (2007), de Teresa Prata, já a partir de sua
primeira imagem, com o célebre lema “A Luta Continua” (nome, inclusive de um
documentário realizado em 1971) encetado em uma faixa no alto do caminhão,
fazendo com que a gravidade do sério-dramático emerja em meio às misérias da
degradação humana aos quais são submetidas suas personagens. E alguns dramas
individuais são observados em meio ao coletivo, como é o caso de Suzana, em que
a ausência do contato com os filhos é acentuada pela observação inicial dela se
despedindo deles em casa, numa situação que em nada parece prever o que se
sucederá. Tudo trabalhado de forma
bastante corpórea, com suores, risos, lágrimas ou flatulências e distante do
apelo de um imaginário fantástico e ao “exótico” das narrativas africanas que o
filme de Prata tende, ainda que com relativo sucesso e maior equilíbrio entre
as partes, a seguir. Se a produção que antecede e a que se segue a
Independência (que contou com a contribuição do próprio Azevedo) era
obsessivamente focada no colonialismo, aqui a temática a ser ressaltada se
encontra associada a mais prementemente contemporânea a sua produção, a questão
de gênero; em última instância e talvez de forma demasiado apressada , essa é
que unirá comandante e subordinadas em
sua opção final. E a cena em que uma das prisioneiras lê um discurso plenamente
antenado com o vocabulário ideológico da época talvez se apresenta, mais que
qualquer outra, como uma ressignificação ancorada na realidade dos que retrata
– ao contrário, certamente, dos discursos e ações observados nos documentários
da época – que põe em suspeição, de forma muito dialógica, as imagens
documentais da geração anterior. O cinema desdizendo o próprio cinema e,
particularmente aqui, a ficção desdizendo ou ampliando o foco do documentário,
forma narrativa que tradicional e equivocadamente sempre se associou como
automaticamente mais próxima de traduzir o real. O que apenas deixa a entrever
o quanto O Tempo dos Leopardos
(1985) deve ter tido seu argumento original, de Azevedo, transformado pelos
iugoslavos. Tudo isso dentro de um
padrão de produção mais próximo do cinema internacional, ainda que mais modesto
que o filme de Prata. Destaque para momentos comoventes como o da despedida de
Margarida, sentido com a intensidade e o júbilo como só entre os que
partilharam de um sofrimento intenso e coletivo e também para a imagem final,
apenas percebida pelo espectador, de Margarida a colher frutos (venenosos?),
que talvez sejam a única forma de lidar com as expectativas familiares ou sua
própria vergonha diante da humilhação sofrida. E igualmente para o momento em
que uma das prisioneiras é incitada a cantar e outra canta uns versos de Domingo à Tarde, sucesso no Brasil com
Nelson Ned, contraposição aos hinos e prédicas socialistas que eram obrigadas a
repetir. Ebano Multimidia/Ukbar
Films/JBA Production. 83 minutos.
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