Filme do Dia: Boudu Salvo das Águas (1932), Jean Renoir
Boudu Salvo das
Águas (Boudu sauvé des eaux, França,
1932). Direção: Jean Renoir. Roteiro Adaptado: Jean Renoir& Albert
Valentin, baseado na peça de René Fauchois.
Fotografia: Marcel Lucien. Música: Léo Daniderff&Raphael. Montagem:
Marguerite Renoir & Suzanne de Troeye. Com: Michel Simon, Charles
Granval, Marcelle Hainia, Severine Lerczinska, Jean Gehret,
Max Dalban, Jean Dasté, Jacques Becker.
Monsieur Lestingois (Granval) é o típico bom
burguês. Dono de uma loja de livros usados, seu espiríto cristão se contrapõe à
mentalidade racional-capitalista da mulher. E quando ela se afasta, deixando
estarrecido o estudante que pretende comprar um livro de Balzac, ele lhe dá
este e outro livro às escondidas, tendo como argumento, que ama a juventude. O
que Madame Lestingois (Hainia) não sabe, é que além de pio, seu marido a trai
quase que diariamente com a jovem
empregada Anne-Marie (Lerczinska), que se orgulha de não ser como suas amigas,
que possuem como parceiros um tolo soldado e um carvoeiro. Voyeur incorrigível,
Monsieur Lestingois, descobre em suas incursões pelos transeuntes, um mendigo
que lhe chama a atenção pela beleza física, e que pula da ponte. Extremamente
chocado com o que viu, Lestingois corre e se joga no Sena, salvando o mendigo.
Após levá-lo para sua casa, procurando se livrar da turba que o rodeia,
Lestingois consegue reviver o mendigo, Boudu (Simon). Esse, no entanto, longe de
ficar feliz ou agradecido por Lestingois tê-lo salvo, torna-se uma pedra no
sapato de seu salvador. Reclama da sua mulher, que diz o incomodá-lo com sua
presença, da roupa que Lestingois lhe traz, por não ser adequada para seu
tamanho e da sopa que lhe está sendo preparada, além do que com sua
despreocupação, utiliza o caro lenço de madame para limpar a graxa de seus
sapatos, transforma a cozinha num chiqueiro e impede que Lestingois consiga
prosseguir com seus encontros com Anne-Marie, dormindo no chão, no meio do
percurso, porque se diz incomodado com o conforto da cama. Embora tanto madame
quanto Lestingois já pensem em uma forma de se livrar de Boudu, esse
profundamente transtornado com o fato de Boudu ter cuspido em uma edição rara
de Balzac, o espírito humanista de Lestingois o impede de tomar uma decisão de
imediato, sempre disposto a servir Boudu, seja lhe entregando um dos bilhetes
de loteria que comprou ou lhe pagando para ir ao barbeiro. Após uma
transformação, cortando a barba e vestindo-se com terno, Boudu conquista não só
Anne-Marie como a mulher de Lestingois. Toda a farsa rui quando Lestingois em
um encontro furtivo com Anne-Marie se encosta na porta que dá acesso ao
aposento vizinho, e flagra Boudu com madame. Boudu ganha na loteria e afirma
que casará com Anne-Marie. Quando todos pensam que ele agora se ajustará aos
bons modos da sociedade e se transformará numa cidadão respeitável, após a
cerimônia faz com que a canoa vire e consiga fugir. Troca suas roupas elegantes
pela roupa puída de um espantalho e volta a mendigar. Consternada, Anne-Marie
se interroga se ele fugiu ou morreu, sendo consolado por Lestingois, que por
sua vez também abraça a sua mulher.
Renoir, sem muitas sutilezas, partindo de uma peça
teatral, realizou uma sátira à hipocrisia burguesa pouco usual para os padrões
da época. É a figura de Boudu, que não
concretiza o papel de “bom selvagem” que Lestingois pretendia para ele, subvertendo
e desestabilizando toda uma vida de falsas aparências e respeitabilidade, já
que seus modos grotescos, longe de se enquadrarem no padrão de higiene e moral
burgueses, antes os confronta. Grandemente moralista, ainda que com o sinal
invertido, Renoir apresenta a figura do mendigo edificada por uma ética
incorruptível, em que o dinheiro está longe de ser primordial. Ao se encontrar
desconsolado em um parque, logo no início, procurando pelo cachorro que fizera
amizade há pouco, e receber uma esmola, ele entrega para o burguês a quem abre a porta do carro de
luxo. Da mesma forma pouco lhe interessa uma mudança de status com o prêmio
milionário recebido. Com sua habitualmente talentosa direção de atores, Renoir
aqui também explora em muitos momentos a profundidade de campo e até, em raros
momentos, a profundidade de foco. Cenas como a que Anne Marie fala da janela
com alguém no prédio vizinho seriam rememoradas por Truffaut, ao longo de sua
carreira, acentuando seu caráter fake, em Noite Americana (1974). Por sua vez,
Chabrol faria uma referência terna a Renoir em seu segundo filme, Os Primos
(1959), na personagem do livreiro que também não se importa que o estudante
leve alguns livros sem pagar. O próprio Renoir já é um dos primeiros exemplos
de que o cinema na sua época já possuía história o suficiente para ser evocado.
Quando Boudu encerra sua curta carreira de burguês com chapéu coco e andar
trôpego, logo associamos sua imagem com o vagabundo de Chaplin. Sua sátira aos
valores burgueses, assim como particularmente, sua recusa a descrever os
marginalizados como meros receptores de uma identidade orientadas pelos valores
burgueses e cristãos, de comiserabilidade, pode ser comparada a de Buñuel em Viridiana (1961), embora aqui o final acene para uma provável reestruturação da ordem,
com cada qual novamente no seu local “legítimo”, que não é presente no filme
espanhol. Algumas imagens de um barco no Sena, assim como o casamento entre
Anne-Marie e Boudu e a presença de Jean Dasté em uma ponta logo nos fazem
lembrar L’Atalante (1934), de Jean Vigo. Essa versão exibida na TV
provavelmente é a americana, já que a francesa conta com 10 minutos
adicionais. Pathé Films/Sirius. 81
minutos
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