Filme do Dia: Os Olhos de Cabul (2019), Zabou Breitman & Eléa Gobbé-Mevéllec

 


Os Olhos de Cabul (Les Hirondelles de Kaboul, França, 2019). Direção Zabou Breitman & Eléa Gobbé-Mevéllec. Rot. Adaptado Zabou Breitman, Patricia Mortagne & Sébastien Tavel, a partir do romance de Yasmina Khadra. Música Alexis Rault. Montagem Françoise Bernard.

Numa Cabul devastada pela guerra civil que levou ao poder o Talibã, o jovem casal Mohsen e Zunaira, pretende resistir secretamente à imposição autoritária sobre suas vidas, e seus corpos, mais notadamente o de Zunaira, que apenas pode sair de casa trajando uma burka. Um outro casal, de meia-idade, Atik e Mussarat, vive um outro drama. Atik se sente deprimido com a eminente perda da esposa para o câncer. Quando Mohsen efetua uma brincadeira em público com sua esposa, ambos são detidos e humilhados separadamente. Revoltada, Zunaira passa a trajar burka dentro de casa e impedir que Mohsen a toque. Numa discussão entre ambos, Zunaira acidentalmente mata Mohsen e é condenada à morte pelos talibãs. Atik, que trabalha como carcereiro na prisão, fica intrigado com Zunaira. Vai até a sua residência e descobre, dentre outras coisas, um auto-retrato que a artista se ilustrara nua. Um dos vizinhos afirma que a morte de Mohsen fora acidental e que Zunaira era boa pessoa. Atik tenta, sem sucesso, que a pena de Zunaira seja revertida. No dia de sua execução, Mussarat, tocada pela emoção que testemunhara no marido, decide assumir o lugar de Zunaira.

Que não se pretende suavizar a situação retratada por se tratar de uma animação, fica evidenciado na antecipação do tiro que um talibã desfere contra uma andorinha – representação da liberdade – que será seguida, tempos depois, pelo apedrejamento público de uma mulher, testemunhado por Mohsen. E as relações entre gêneros, no campo diegético ou não, estão longe de serem simplificadas. Dirigido por duas realizadoras e falado em francês, é inspirado no livro de uma autora que se revelaria posteriormente como homem. E é, inclusive, do ponto de vista de dois homens completamente inadaptados ao regime, e ao tratamento que esse reserva às mulheres, que a narrativa se constrói. Ambos irão, em última instância, pagar com suas vidas, por esse posicionamento. Um, acidentalmente, e tendo sido o motivador da situação que pôs o casal em risco. O outro, consciente do perigo de morte ao qual estaria submetido. E Zunaira, que afirma que todos se encontravam já mortos, permanecerá a única viva do quarteto principal, assim como o velho Nazish, cego de um olho que, tratado com chacota sádica a determinado momento por Atik, afirmando para esse que ele mais facilmente partiria para o cemitério que de Cabul, e que será sobrevivido por esse. Há uma busca de equilíbrio entre os fios românticos e intimistas da história, e a percepção histórica com H maiúsculo, que apressa vidas que já estavam condenadas ou antecipa outras que potencialmente teriam muito a ser vividas. E o ato inconsequente de Mohsen será o gatilho, embora pudesse ser qualquer outro descuido, numa sociedade que se vive constantemente sob o risco da aflição, senão pior. E se não temos mais acesso ao “contra plano” afetivo de Zunaira, pós acontecimentos trágicos que estavam destinados a ela, esse ficará relegado a figura secundária de Nazish, que vai prestar sua homenagem ao amigo, um dos bastiões de sensibilidade – ou insensibilidade segundo sua esposa – em um mundo embrutecido e disruptivo, no qual crianças ajudam, por exemplo, no apedrejamento de mulheres. E o filme não se furta em apresentar, mesmo com brevidade, a hipocrisia de quem se encontra no poder, dos talibãs cercados por mulheres. As aflições vivenciadas sob a égide do Talibã já haviam sido temas de um longa de animação dois anos antes, A Ganha-Pão, com os traços dos personagens mais tipicamente associados com o que familiarmente se associou à animação, e o enredo idem, ao contrário desse, que se filia mais ao realismo adulto de um Valsa com Bashir; filia-se é um termo adequado, já que as imagens dessa Cabul devastada também são evocativas de aquarelas, fugindo do escopo mais estritamente realista dos traços de Folman, e trazendo uma ou outra pequena licença animada. Destituído de sentimentalismo, o filme nos faz sentir, sobretudo, pela ausência do jovem casal, quando observamos o ambiente de suas fantasias e sonhos de vida, sua casa, agora ocupada ocasionalmente por crianças sem teto, no breve momento em que Atik fareja vestígios desse passado ainda presente.|Les Armateurs/Mélusine Prod./Close Up Films/Arte France Cinéma/RTS/KNM/Canal+ para Memento Films. 81 minutos.

 

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