Filme do Dia: Deus Branco (1928), W.S.Van Dyke
Deus Branco (White Shadows in the South Seas, EUA, 1928). Direção:
W.S. Van Dyke. Rot. Adaptado: Ray Cunningham,
Ray Doyle & John Colton a partir do romance Frederick O’Brien.
Fotografia: Clyde De Vinna, George Gordon Nogle & Bob Roberts. Música: William Axt. Montagem: Ben Lewis.
Com: Monte Blue, Raquel Torres, Robert Anderson, Renee Bush, Dorothy King,
Napua.
O Dr. Matthew Lloyd
(Blue) vive insatisfeito com as condições de exploração dos nativos polinésios
pelos homens brancos, que fazem uso de todas as artimanhas para conseguir
perólas, a custa de muitas vidas, sob o comando do inescrupuloso Sebastian
(Anderson). Lloyd cai numa armadilha organizada por Sebastian e se vê
abandonado em um navio cheio de vítimas da peste bubônica. Uma tempestade
irrompe e Matthew acorda em terra, observando uma cabana relativamente próxima.
Quando se aproxima do local observa todo um grupo de nativos que não tiveram
qualquer contato com a civilização branca.
A mulher que o descobre e alerta a tribo é a jovem e bela Fayaway
(Torres). Considerado pela tribo como uma divindada, por sua pele branca,
festejos são realizados para celebrar sua chegada. Quando tenta uma aproximação
maior de Fayaway é escorraçado por seu pai, o líder do grupo, que afirma ser
Fayaway uma virgem-tabu. A situação muda de figura quando Matthew percebe vida
no pequeno irmão de Fayaway que era dado como morto, inclusive por ele mesmo. O
pai afirma que o tabu fora quebrado. A situação de vida paradisíaca finda
momentaneamente quando Matthew se vê tentado pelas pérolas que os nativos
descartam das ostras. Ele próprio passa a mergulhar atrás delas e começa a dar
pouca atenção a Fayaway, que o descobre furtivo fazendo fogueira para que
navios o encontrem. Quando percebe a tristeza da mulher, decide jogar fora as
perolas e valorizar a vida que leva. Porém o fogo que fizera chamara a atenção
da embarcação de Sebastian, que se aproxima do local para um primeiro contato e
quando descobre uma pérola no colar de uma nativa, decide se fixar na ilha.
Matthew tenta, em vão, alertar os nativos contra os riscos do grupo. Numa
altercação com Sebastian, é atingido por um de seus homens e morre pouco após.
Mesmo contra os desígnios do chefe da tribo, pouco tempo depois a realidade da
vida na comunidade é em tudo semelhante a que Matthew morava antes de sua
aventura forçada pelos mares.
Os planos iniciais em
locações polinésias foram aparentemente filmados por Flaherty, considerado por
Hollywood o grande explorador de “locais exóticos” desde o sucesso de seu Nanook, o Esquimó (1922). Chama mais a
atenção que as tomadas panorâmicas, algumas aéreas, do atol onde se desenrola a
narrativa, a exuberante fluidez dos planos mais fechados que se seguem,
apresentando os nativos em suas atividades na terra a partir de uma perspectiva
de uma embarcação, em planos-sequencia virtuosamente coreografados – estratégia
visual que se repetirá, de forma mais modesta, no primeiro idílio amoroso entre
Mathew e Fayaway. Ao contrário da habitual perspectiva do colonizador branco
como virtuoso e ético, o filme desde antes de ingressar em sua história
propriamente dita, já ressalta o quanto a presença dos brancos fora
determinante para a corrupção da população nativa, ou seja, a perspectiva do
“bom selvagem”, a seu modo não tão distinta da presente na obra do próprio
Flaherty, mesmo que de modo bem menos esquemático que aqui – com contrastes
patéticos como o do lamento do pai que perde o filho contraposto por uma cena
festiva de música e dança em um bar a poucos metros da cena fatal. E é
interessante como o filme constrói essa consciência para além dos comentários
extra-diegéticos iniciais, incorporados na própria figura do médico decadente e
alcoólatra que se diz envergonhado do que a raça branca fez aos nativos. E ainda mais surpreendente que este
personagem seja justamente o elo de ligação com o que a narração do filme
sustenta como ético, antecipando soluções similares – porém menos enfáticas –
posteriores como a do médico igualmente com uma queda pela bebida em Brutalidade (1947), de Jules Dassin. Pouco
tempo depois, no entanto, ironia das ironias, o náufrago se verá entre nativos
que nunca tiveram contato com a civilização branca, e será adorado como o “deus
branco” do título brasileiro. Embora tal título não seja de todo descabido, o
original traz bem mais elementos que neutralizam tal admiração, sem esquecer
que é o próprio Matthew que involuntariamente acende a fogueira que gerará o
caminho para o contato com os brancos (e, consequentemente, sua própria morte).
E se a morte dele surge como mais digna, transformando-o em algo como um mártir
do que a morte em vida que levava anteriormente, nada do antigo culto a sua pessoa parece
presente na situação atual da comunidade, ou seja, suas lembranças ficaram
restritas a sua amada, tão imersa parece a população nas práticas que a
exploram. E a exploração de elementos
exóticos como a sensualidade nativa feminina representada pelo riso coquete de
uma das “selvagens”, justamente a que se apaixona pelo branco (vivida pela sex
symbol de curta carreira Torres) assim como pela massagem coletiva
proporcionada por várias mulheres redimensiona ainda mais a ousadia inicial do
filme/personagem. E uma cartela virá a
comentar que se trata de uma paragem que “foi esquecida pela Mãe Terra”, quase
a contradizer a noção de paraíso maculado pelos brancos de seu início,
demonstrando ser aparentemente imperativo mesmo é a exploração desse
exótico/erótico. Porém, o herói pouco tempo depois cederá aos “desígnios” de
sua raça, ao ver pérolas sendo descartadas e, munido da mesma ganância que
criticara em seus iguais, mergulhará em busca delas avidamente. O realismo com que representa os efeitos
nocivos das condições amadoras dos mergulhadores tampouco seria possível de ser
apresentada pela produção norte-americana pós-Código Hays, tal como a saliva
branca e volumosa assomando a boca do homem ainda inconsciente e que, após
horas de tentativa de reanimação, morre. A imagem de seres marinhos caminhando
sobre o corpo desacordado do náufrago também seria um toque de naturalismo a
ser dispensado por situações similares da produção clássica posterior. Os corpos atléticos masculinos (e aqui também
femininos) semi-despidos e as imagens paradisíacas, acrescidas aqui por então
raras imagens submarinas, assim como a perspectiva mistificada dos nativos
voltariam a se encontrar presentes no clássico Tabu (1931) de Murnau, que também contaria com a colaboração de
Flaherty, que havia se antecipado a ambos com seu Moana (1926). Não se
escusa em apresentar uma suma de todos os problemas enfrentados pelos nativos
na caça de pérolas sem que se fique claro ao certo a dimensão temporal em que
ocorrem – embora se torne pouco verossímil que aconteçam seguidamente como
apresentadas pelo filme e as cartelas pareçam ressaltar que são situações
genéricas, a ambiguidade da construção visual permanece em última instância até
o final da sequencia, quando se fica sabendo que somente o último caso ocorre
contemporaneamente à ação dramática em questão. O resultado final, com todos os
seus excessos e ocasionais clichês, soa demasiado maduro em termos do que se
produzia então, e mesmo tocante em sua representação final de uma nostalgia
pela perda irremediável do paraíso
sentido pelas lágrimas de desencanto de Fayaway, enquanto seu irmão se
tornou apenas mais um dos caçadores de pérolas a arriscar a vida. Primeiro filme a utilizar o que se tornaria a
célebre marca registrada do estúdio com um leão rugindo e também o primeiro
filme sonoro do estúdio – sendo o som
aqui restrito a utilização de efeitos sonoros e música, os diálogos ainda sendo
expressos através das habituais cartelas dos filmes mudos. MGM. 88 minutos.
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