Filme do Dia: Gente Fina é Outra Coisa (1977), Antônio Calmon

 


Gente Fina é Outra Coisa (Brasil, 1977). Direção Antônio Calmon. Rot. Original A Guerra da Lagosta, de Graça Motta, Nélson Motta, Antônio Calmon, Leopoldo Serran, Pedro Carlos Rovai & Mauro Rasi. Chocolate ou Morango? e O Prêmio, Antônio Calmon, Pedro Carlos Rovai & Leopoldo Serran. Música Odair José. Montagem Sylvio Renoldi. Cenografia Marília Carneiro. Maquiagem Jacques Aila de Jesus. Com Ney Santanna, Maria Lucia Dahl, Paulo Villaça, Carlos Kroeber, Marieta Severo, Thaís Portinho, Rubens Araújo, Louise Cardoso, Milton Carneiro, Jacqueline Laurence, Nuno Leal Maia, Thelma Reston, Selma Egrei, Márcia Rodrigues, Kátia D’Angelo, Álvaro Freire.

A Guerra das Lagostas. No apartamento do rico casal (Villaça e Dahl), Tadeu (Santanna) é estimulado, mas na última hora reprimido, pela sádica patroa,  Magali, que tem medo que as lagostas se encontrem estragadas para o jantar da noite.  Tadeu é ridicularizado quando sai para passear com o cachorro da madame, a quem ela presta mais atenção que ele. Comparecem ao jantar um grupo da elite, mas o marido está de olho em um empresário, Doutor Saveiro (Kroeber), que não para de cantá-lo, enquanto sua esposa dança lascivamente com a mulher do empresário (Severo), sobre os olhos desinteressados da cleptômana Tânia (Portinho) que vive a envergonhar o marido, Renato (Araújo).  O cão morre envenenado no momento do jantar, e Magali avisa a todos que envenenou a lagosta que comeram, e ela não. Enquanto o grupo vai para o hospital, ela parte para a cama com Tadeu. Apenas para no dia seguinte despedi-lo. E pedir que o marido, recém-chegado do hospital (e de um provável encontro amoroso furtivo com o empresário) o surre, levando na verdade uma surra do rapaz, observada com alegria pela rapaziada da rua, através de uma fresta do portão. Chocolate ou Morango? A Mercedes do janota Guimarães (Carneiro) bate no calçadão à beira-mar. Seu motorista teve um ataque cardíaco. Aos curiosos que se aproximam, ele indaga quem sabe dirigir, e o único que sabe ou se oferece é Tadeu, que há pouco vasculhava no jornal novamente à procura de emprego. A ele é oferecido o emprego de motorista temporariamente. E o novo patrão lhe diz que sua filha Cecília (Cardoso) irá se unir ao noivo no dia seguinte. E enquanto o pai canta loas à pureza da filha, a encontra, ao lado da mãe, Matilde (Laurence) se agarrando com um outro homem, Alfredinho (Maia). Matilde tem que dar a notícia a mulher do motorista enfermo, Anunciata (Reston), que desmaia. O pai oferece 200 mil a Alfredinho e este desiste do plano de ir junto com Cecília para Arembepe, viver de pesca e artesanato, após a poupança (doada pela avó) de Cecília acabar. E Cecília  vai com Anunciata e Tadeu ao hospital. Anunciata fica e Cecília leva Tadeu para uma despedida de solteira só entre os dois. No dia seguinte, Tadeu a guia para o casamento, junto ao noivo. O Prêmio. Íris (Egrei) quer ajudar a melhor amiga, a introvertida e frágil Margarida (Rodrigues), a se vingar do marido, Carlos (Freire) a quem testemunhou a traindo com uma arrumadeira, Elvira (D’Angelo) e quer Tadeu como copeiro na casa dela. Na residência de Margarida, ele passa a ser o observado trabalhando por esta, Íris e sendo assediado por Elvira. Quando Tadeu parte para seu “encontro secreto” com a patroa, Elvira escuta tudo. Um homem tira uma foto do flagrante do encontro e é escorraçado por ambos, tendo o filme retirado da câmera. Elvira, Tadeu e Margarida observam os planos de Íris com Carlos, de se apossarem da empresa do pai da mulher. O flagrante é feito. Íris expulsa por Margarida, não sem antes fazer sexo com Tadeu. Após o ajuste de contas com o marido, Margarida flagra Tadeu nos braços de Elvira. E novamente este vai para o olho da rua, sem emprego.

Entre os filmes-cabeça da época do Cinema Novo (O Capitão Bandeira contra o Doutor Moura Brasil) e a onda de cinema jovem-pop (Menino do Rio), Calmon teve uma passagem pela pornochanchada. Há uma presença de  crítica social sobre a forma de chiste, compartilhando do peculiar trato escrachado do gênero para com o modus operandi da sociedade brasileira. No primeiro episódio é a patroa  atormentada, da sua banheira, sobre o jantar da noite, e a atormentar igualmente seu copeiro, vivido por um ainda inexpressivo Santanna, que modulará sua interpretação para algo um pouco menos tosco com o avanço do personagem sobre a realidade na qual vive; há uma forte derivação cinemanovista no modo como a elite é representada como sexualmente pervertida; no segundo o ricaço que xinga os transeuntes por não saberem dirigir, os chamando de inúteis, sendo que ele próprio tampouco o sabe, ou se digna a fazê-lo com o empregado à beira da morte, numa saída mais inteligente e entranhada na cultura brasileira. O segundo episódio parece o mais bem resolvido de todos, fazendo uso inteligente de inserções do anterior quando o futuro segundo patrão de Tadeu indaga se ele poderia trazer referências do anterior (e observamos em flashback os golpes dele no ex-patrão) ou quando este o convida a assumir o posto temporário de motorista por parecer “ser um rapaz bem apessoado e limpo” (e aparecem flashbacks do cão assassinado por Tadeu). E a cena mais hilária de todas, quando Anunciata, mesmo semiconsciente é quem sabe onde está o açúcar que lhe será servido após ter desmaiado (“na lata verde, onde está escrito açúcar”). Sem falar no salto imediato para Anunciata já estatelada no chão, deixando evidente e sem necessidade de redundância, o ocorrido. Além da música de Simon & Garfunkel com o nome da figura vivida por Louise Cardoso, no auge de sua juventude e beleza. No primeiro episódio todo o elenco parece atuar em uma chave distinta de interpretação. Há uma cena na mesa, que poderia ser uma evocação de Buñuel e uma calcinha a fazer rima – não se sabe por qual motivo, a não ser pela fama já conhecida das apresentações do cantor – com a bela Moça, de Wando, sem deixar de lado algumas incursões sonoras creditadas (ao contrário da canção de Wando), de Odair José.  As referências ao cinema que lhe antecedeu, rolam soltas, sobretudo o Cinema Marginal (“matei por amor”) e Novo (“Não, só depois do casamento.”) Calmon inova no gênero filme de esquetes, ao interligá-los com o mesmo personagem e situações sucessivas, algo incomum tanto no cinema brasileiro quanto europeu – o estadunidense, ao menos à época, não era dado a fazer uso do recurso. Qualquer rendição à tradição que não entre no balaio pornochancadesco é descartado para o protagonismo da piada, ou perde-se o verossímil, mas não a piada, como é o caso do casal de noivos se dirigindo juntos ao casamento, apenas para que a insinuação erótica de que Cecília ficará com os dois (morango e chocolate) picolés funcione como piada-fecho. Marcia Rodrigues está com o visual muito próximo da contemporânea Dina Sfat, então na tv em O Astro. E por falar em novela, não há nada mais novelesco, e em certo sentido fassbinderiano, que a cena na qual Íris denuncia seus planos diante do trio Elvira-Tadeu-Margarida. Íris sendo a caricata encarnação do diabinho melodramático a tecer toda sua maldade-trama, e não satisfeita com, em reverberá-la também para o espectador.  Destaque para a presença de um dos comerciais psicodélicos da TV Sharp, vinculada à chegada dos aparelhos em cores no país. E para o poster de Longe do Vietnã no apartamento de Íris. Luiz Carlos Lacerda surge numa ponta como o recepcionista gay a se insinuar para Tadeu.|Lynx Films/PNF/Sincrocine. 87 minutos.

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