Filme do Dia: Roma (2018), Alfonso Cuarón



 Roma (México/EUA, 2018). Direção,  Rot. Original e Fotografia: Alfonso Cuarón. Montagem: Alfonso Cuarón & Adam Gough. Dir. de arte: Eugenio Caballero, Carlo Benassini & Oscar Tello. Cenografia: Barbara Enriquez. Figurinos: Anna Terrazas. Com: Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autray, Carlos Peralta, Marco Graf, Daniela Demesa, Nancy García García, Verónica García, Andy Cortés, Fernando Grediaga, Clementina Guadarrama, Jorge Antonio Guerrero.

1970-1. Cleo (Aparicio) é empregada na casa da Sra. Sofía (de Tavira), com seus muitos filhos. O marido da patroa, Sr. Antonio (Grediaga), progressivamente ausente, resolve sumir de vez. Cleo, que havia tido um envolvimento romântico com Fermin (Guerrero), é abandonada por esse na sala de cinema ao afirmar para ele que se encontra grávida.  Sua gravidez é aceita por Sofía, mas quando Cleo se encontra  com a mãe de Sofía, Sra. Teresa (García), escolhendo um berço para seu filho, estudantes que participavam de um protesto entram no ambiente, um deles sendo assassinado. Fermin é um dos homens a empunhar uma arma. O susto faz com que a bolsa de Cleo se rompa antes do tempo e o trânsito caótico devido as convulsões sociais faz com que a filha de Cleo nasça morta. Pouco tempo depois, ainda bastante amuada, Cleo vai meio que a contragosto com a família à praia, última vez em que farão uso do gigantesco Galaxy que foi trocado por um carro menor e Cleo ajudando a salvar duas das crianças que iam se afogando.

         Com suas lentes grandes angulares a captarem todo barroquismo moderno de ambientes da elite mexicana do período retratado, em elaborados planos-sequencias, desde suas primeiras imagens, Cuarón, que num tour de force acumula quatro das principais atividades de um filme, três delas sozinho, incluindo a exuberante fotografia em p&b, faz uso desse ambiente para criar um estranhamento que emerge do mais trivial cotidiano, de forma que parece de algum modo herdeira, embora com maior sutileza, da Lucrecia Martel de O Pântano. Como naquele, e ainda uma vez mais de forma mais sutil, desenha-se a transferência de afetos entre os rebentos bem nascidos e suas criadas. Ao contrário daquele, no entanto, é da perspectiva da criada que se observa, de forma um tanto passiva, como muito naturalmente ocorreria, as relações dentro da esfera familiar e dessa com os grupos de amigos próximos. E é claro há algo de felliniano, na forma como todos saem para fora da residência para tentar combater um incêndio próximo, enquanto um dos convidados, travestido com roupas de festa ainda, começa a cantar em alemão. Ou que um robusto líder de artes marciais, com tiques de guru canastrão, apresenta-se a um grupo de jovens, embasbacados por sua mera presença.  É o produto da influência da mídia, também observada quando a família assiste Chaves na TV, único momento em que se observa reunida de forma pacífica. Ou ainda nos rituais das idas ao cinema, seja para aplacar os desejos sexuais das criadas e de seus enamorados, seja para aplacar a energia em excesso das crianças reclusas ao espaço da casa.  É o pitoresco que pode ter tinturas nostálgicas, mas sem a caricatura ególatra que o passado assoma em Fellini (Amarcord). Parece se tratar de um relato autobiográfico, como naquele, e quando a dedicatória final surge, ainda mais. Nesse sentido, a escalação de Aparicio, que nunca antes atuara, e que possui uma origem similar a da personagem que interpreta, provoca a diferença que os filmes neorralistas já haviam descoberto.  A cena em que perde o bebê, único traço irremediável de individualidade em um mundo de apagamento e dedicação completa a um outro de realidade bem distinta, mas também compartilhada, é de longe a mais tocante do filme.   Na verdade, o que as lentes captam, são também os ambientes citadinos ou rurais, pobres ou ricos, quase que como numa tentativa de imersão em uma época direcionada por aquelas, e por um primoroso trabalho de direção de arte, porém esquecendo-se, nesse arranjo, de se aproximar de seus personagens, sempre observados de fora. É impressionante, no entanto, a maestria com que Cuarón organiza sua coreografia do social, seja na riqueza infinita de detalhes que acompanha uma mera caminhada apressada na rua (evocativa de Janela Indiscreta), ainda quando seja para uma cena de poucos segundos ou em um descampado na periferia em que jovens homens realizam atividades esportivas. Ou ainda nas manifestações estudantis.  Somente quando o filme assume de vez o recorte que busca, o do machismo provocando estragos tanto na faxineira humilde quanto em sua patroa, ambas esquecidas pelos homens que as engravidaram ou abandonaram com suas famílias, é que talvez o filme perca um pouco (ou muito) do viço de seu impacto polimorfo. O que também vale para a pressa algo desajeitada que procura mesclar sua crônica minimalista dos costumes com a história social mais ampla de forma que melhor caberia a uma minissérie televisiva. Leão de Ouro em Veneza. Esperanto Filmoj/Participant Media para Netflix. 135 minutos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Filme do Dia: Der Traum des Bildhauers (1907), Johann Schwarzer

Filme do Dia: Quem é a Bruxa? (1949), Friz Freleng

Filme do Dia: El Despojo (1960), Antonio Reynoso