Filme do Dia: A Turba (1928), King Vidor



A Turba (The Crowd, EUA, 1928). Direção: King Vidor. Rot. Original: King Vidor, John V.A. Weaver & Joseph Farnham. Fotografia: Henry Sharp. Montagem: Hugh Wynn. Cenografia: Cedric Gibbons & A. Arnold Gillepsie. Figurinos: André-ani. Com: Eleanor Boardman, James Murray, Bert Roach, Estelle Clark, Daniel G. Tomlinson, Dell Henderson, Lucy Beaumont, Freddie Burk Frederick, Alice Mildred Puter.
O jovem John Sims (Murray), sonho de grandes ambições futuras do pai, tem uma reviravolta na sua vida com a morte do mesmo, quando ele possuía somente doze anos. Aos vinte e pouco parte para Nova York disposto a se fazer por si próprio. Lá passa a trabalhar em um escritório e se torna namorado e, posteriormente, marido de Mary (Boardman). Logo possuem um casal de filhos. A vida vai transcorrendo em sua banalidade, até o dia em que John recebe uma grande quantia como compensação pelo slogan que havia planejado para a firma. No impulso da comemoração, a filha do casal é vítima de um caminhão. Depressivo, John não mais consegue se concentrar no emprego e pede as contas. Não conseguindo permanecer em qualquer emprego, ele entra em conflito aberto com Mary, que decide ir morar com os irmãos. Porém, na hora em que ela vai partindo John surge com a proposta de emprego humilde e convites para um número cômico no teatro.
Trabalhando com material bastante distinto e mais ambicioso que os rotineiros melodramas que realizava no período, Vidor consegue um resultado bem superior. Inicialmente se acredita tratar dos habituais dramas pomposos de forte coloração patriótica – o fato do protagonista ter nascido justamente no dia da independência americana, como ressaltado nos créditos iniciais, e a fé depositada pelo pai mais que sugerem tal encaminhamento. Porém, em pouco tempo, descobre-se não sem certa dose de ironia e deboche, que as aspirações do jovem no mundo da cidade grande não farão jus, nem de longe, às expectativas do pai. Com relação a esse momento de descoberta, o senso feérico com que o protagonista é engolfado pelo  novo ritmo de vida  ganha um raro equivalente também em termos formais, passando o filme a ter uma dimensão igualmente histérica, marcada sobretudo por uma montagem alucinada. O motivo da metrópole era uma das obsessões de grandes realizadores do cinema contemporâneo da época, assim como suas imbricações com a vida moderna em filmes diversos (Metropolis, Berlim, Sinfonia de uma Metrópole, Aurora), e no caso em questão tal dimensão é bastante acentuada pelo fato da enorme quantidade de filmagens em locação, algo não tão comum à época. Outro elemento que torna o filme um tanto distante das produções habituais é a sua aberta simpatia por um protagonista “atípico”, longe da  condescendência  que parece inicialmente ser somente um trampolim para uma posterior reviravolta nos fatos que o transformará em alguém bem sucedido. Tampouco deixa de ser interessante o quão ambíguo seria a multidão a que faz pensar o título original, que não possui a dimensão exatamente negativa que a versão brasileira optou, sendo a expectativa de ser algo mais do que esse “rosto na multidão” uma pretensão que revela muito dos anseios e igualmente frustrações da vida moderna, sobretudo no que diz respeito a introjeção de tal pressão coletiva à nível individual. Tal expectativa já é antecipada para o espectador menos por John que por um vizinho seu do navio que o leva a Nova York.  A estatura do drama parece dar sinais de enfraquecimento quando se percebe tiradas como a do chefe que afirma logo depois do casamento de John e Mary, que não acredita que eles durarão um ano juntos ou, no trem, no riso dos homens sobre o herói. Quando se acredita que o filme não mais sairá das águas tranquilas da comédia de costumes centrada nos pequenos acontecimentos banais da esfera doméstica e do trabalho (motivos a serem recuperados, sem a mesma criatividade visual, por Billy Wilder em filmes como Se Meu Apartamento Falasse)  ocorre uma nova reviravolta e o filme muda sua chave para o drama da perda da filha do casal e os acontecimentos subsequentes. É interessante perceber o quanto cada mudança de perspectiva dramática, de saga de uma família para a comédia e por fim melodrama reverberam de modo intenso e expressivo os altos e baixos da vida das personagens, sendo igualmente surpreendentemente não acabado o desfecho. Por tais características – para não citar detalhes como o inédito destaque que ganha, por exemplo, a descarga de um vaso sanitário, elemento cotidiano considerado tabu - o filme pode ser considerado extremamente moderno. O diálogo com as vanguardas europeias, que já havia sido sugerido pelo ritmo da montagem em seu relativamente longo prólogo se torna explícito no momento em que John entra em parafuso no trabalho e se observa a inserção de números sobre a imagem para representar seu estado de confusão mental, tal e qual O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Wiene. Destaque igualmente para a cena em que pai e filho lidam com a dramática situação do desemprego e da desintegração familiar ao andarem pelas ruas, que parece antecipar grandemente um tratamento semelhante, ainda que mais contido, efetuado por Ladrões de Bicicleta (1947), de Vittorio De Sica. Aliás o filme é um dos poucos do período a retratar diretamente a situação da grande depressão que assolava a economia contemporânea, apresentando além do drama pessoal do próprio John, cenas em que se vislumbra o enorme exército de reserva de trabalhadores. Murray, cuja sensibilidade transcende em muito as interpretações habituais da época, um desconhecido no cinema até então, teve seu breve momento de glória, mas acabaria morrendo alcoólatra e afogado poucos anos depois. National Film Registry em 1989. MGM. 104 minutos.

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