Filme do Dia: Viagem ao Princípio do Mundo (1997), Manoel de Oliveira
Viagem ao
Princípio do Mundo (Idem, França/Portugal, 1997). Direção: Manoel de Oliveira.
Rot. Original: Manoel de Oliveira.
Fotografia: Renato Berta. Música: Emmanuel Nuñes. Montagem: Valérie Loiseleux
Com: Marcello Mastroianni, Jean-Yves
Gautier, Leonor Silveira, Diogo Dória,
Isabel de Castro, José
Pinto, Manoel de Oliveira.
Disposto a revisitar os locais que conheceu durante
sua infância em Portugal, o cineasta Manoel (Mastroianni) empreende uma pequena
jornada a vila onde morou com sua família: observa de longe o prédio onde
funcionara o colégio de jesuítas onde estudara; a casa, hoje em ruínas, onde agonizara um jovem de tifo; a árvore com
as marcas de um banco que dividira na adolescência com amigos; uma estátua de
um homem com o eterno sofrimento de carregar um tronco sobre as costas. Quando
observa a estátua, passa uma portuguesa que conta uma ladainha a respeito da
mesma. Juntamente com Manoel se encontram um ator de sua nova produção,
Afonso (Gautier), sua esposa Maria (Castro) e Duarte (Dória), todos
portugueses. Embora filho de portugueses, Afonso nasceu na França e agora
pretende aproveitar a oportunidade e conhecer uma irmã de seu pai, Judite
(Silveira). Quando chegam na casa da tia de Afonso, no entanto, todos se
surpreendem com a extrema desconfiança da velha e seu esposo. Ela não acredita
que um filho de seu irmão, que abandonou a família desde adolescente, e depois
só deu notícias para pedir dinheiro, não saiba português. Quando sabe que o
sobrinho é um famoso ator de televisão, pouco se importa, já que acredita que a
televisão é um instrumento do demônio, que apenas incute o sexo na cabeça das
pessoas. Porém, quando Afonso pede que ela aperte seu braço e que sinta que o
sangue que corre nas suas veias é o mesmo dela, emociona-se. Faz questão,
então, de lhe entregar um pão, para que ele guarde com ele, como garantia para
que saia ileso das guerras que nunca acabam na Europa, como a que atualmente
ocorre na Croácia, mas que também pode se estender à França. Ao mesmo tempo
suspira a morte lenta do país, agora que todos os jovens só pretendem viver em
grandes cidades, e o campo ficou entregue aos velhos, que não possuem agilidade
ou maquinário suficiente para prover às cidades. Após visitarem o túmulo de
seus familiares, Afonso tem que interromper a oração que faz com a tia, já que
é hora de partir para as filmagens. Quando se encontra preparando a maquiagem
para entrar em cena, ele repete a ladainha sobre a estátua e é surpreendido
pela gargalhada de Manoel e outros membros da produção. Afonso afirma então
para Manoel que se transformara em outro homem após essa viagem, da mesma forma
que o próprio Manoel havia se transformado. Manoel incita-o a levar seu novo
personagem consigo para o momento da interpretação.
Duplamente
autobiográfico - tanto o personagem Manoel de Mastroianni é alter-ego de
Oliveira como o de Afonso é de um ator português - Manoel de Oliveira conduz o
filme num ritmo que procura ao máximo explorar as facilidades que um meio como
o cinema pode oferecer a uma narrativa realista. Lidando com um tempo diegético
não superior a algumas horas, o filme consegue tirar bom proveito dessa
condensação de espaço e tempo - os longos travellings de parte do percurso que
os personagens percorrem ajudam bastante no que diz respeito ao espaço, da
mesma forma que também pontuam a diferença entre um momento lírico - como as
lembranças de Manoel do jardim onde vivera parte de sua adolescência - e outro
mais histriônico - como a impossibilidade de Judite aceitar Afonso como
sobrinho, pelo fato de não falar português. Despojadas de qualquer excesso
dramático, as situações e diálogos tanto expressam uma jornada extremamente
íntima - e o deslocamento do foco de atenção de Manoel para Afonso apenas
acentua o caráter de aparente falta de controle sobre o que é narrado tão caro
a dramaturgia neorrealista - como preocupações sociais mais amplas, como a
bélica (a evocação repetida a Croácia) e o futuro de todo um estilo tradicional
de vida na província portuguesa. Sua contida construção dramática evoca tanto o
cinema iraniano contemporâneo quanto, por exemplo, Os Vivos e os Mortos (1988),
de Huston, com quem também compartilha uma certa melancolia nostálgica. Menos
do que de momentos isolados, é no seu conjunto que o filme demonstra sua força.
Aqui, lidando com um tema menos pretensioso, Oliveira conseguiu melhor
resultado que em O Convento. Último
filme de Mastroianni, a quem o filme é dedicado. Gemini Films/IPACA/Le Studio
Canal +/Madragoa Filmes/RTP. 95 minutos.
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